Se tem solução…

Adorava ler revistas de quadradinhos da Disney. Acho que ainda gosto. Alguém com o senso mais apurado pode alegar que a sua personalidade foi formatada pelos clássicos da literatura mundial. Pois nunca tive vergonha de admitir que fui influenciado pelo Peninha. Retive até hoje, duma dessas histórias, uma imagem do Tio Patinhas na sua sala das preocupações onde na parede havia um quadro com o texto “Se tem solução, porquê se preocupar? Se não tem solução, porquê se preocupar?”. Aquilo deve ter feito sentido para mim pois nunca mais o esqueci e, para o bem e para o mal, serviu-me para encarar diversas situações ao longo dos anos. Vem isto a propósito de uns últimos meses complicados.

Os sinais já estavam presentes há uns tempos mas, pelo menos pelo que percebia, eram apenas indícios que necessitariam de alguma vigilância à minha saúde. Com o meu habitual optimismo tinha optado por desvalorizar a situação. Entretanto as restrições do Covid abrandaram, os serviços médicos pareciam estar a voltar ao seu funcionamento normal e achei que talvez fosse uma boa altura para nova avaliação. Duas situações distintas, sem qualquer relação, que apenas coincidiram no tempo.

Pólipos na vesícula. Lá continuavam, tal como há uns anos atrás. Nunca me incomodaram mas desta vez resolvi seguir o conselho do médico. Segundo ele o protocolo aconselhava a cirurgia. Pronto, vamos lá a isso. A intervenção ocorreu a 6 de Dezembro. Coisa simples, feita em ambulatório com anestesia geral. Havia o risco de ficar com algum grau de intolerância a certos alimentos. A verdade é que se até ali a vesícula nunca me tinha incomodado, desde que a removi também nunca senti a falta dela! No que a este blog diz respeito, que é a minha paixão pela bicicleta, foi o mês de Dezembro sem dar ao pedal. Mas o tempo esteve miserável, pelo menos tive uma boa desculpa para não apanhar chuva.

Mas a vesícula era o menor dos meus problemas. Algo também não estava bem com a próstata. Temos de avaliar isso melhor, disse o médico, vamos fazer uma biópsia. Se me iam espetar uma agulha naquele lugar teria de ser com anestesia geral. Podiam alegar que a anestesia local seria suficiente mas eu não queria estar acordado para ver. O exame foi efectuado em Outubro e num apropriado final de tarde chuvoso e sombrio de Novembro foi-me transmitido o resultado: cancro. É aquela palavra que ninguém quer ouvir. Fiz a viagem de regresso a casa sozinho, como era habitual, com um turbilhão de coisas a passar-me pelo pensamento. Tentava planear os passos seguintes mas será que valia a pena fazer planos?

É aqui que entra o quadro do Tio Patinhas. O caminho era simples: fosse qual fosse o desfecho era fazer o que podia ser feito. E havia muito que fazer. Consultas, exames, mais consultas, mais exames. Depois havia a questão da vesícula cuja intervenção se tinha de encaixar ali pelo meio. Como o acompanhamento das duas situações estava a ocorrer em hospitais distintos às vezes via-me a repetir os mesmos procedimentos em dias consecutivos. Tive de criar um pequeno cronograma numa folha de papel para não falhar nenhum agendamento. Pelo meio uma boa notícia: exames complementares pareciam indicar que o tumor se encontrava circunscrito à próstata.

Entretanto a minha disposição estava excelente. Não fazia ideia como reagiria a uma situação dessas mas a verdade é que não tinha perdido o sono, trabalhava, andava de bicicleta e falava abertamente do problema chegando a fazer piadas sobre o assunto. Acho que falar sem rodeios sobre o problema ajudou. Isso e não ir para a internet à procura de segundas opiniões. Mal ou bem, decidi confiar a 100% no conselho do médico. Tinha várias hipóteses de tratamento (ou então não fazer nada). Atendendo à minha condição, idade, etc. ele recomendou-me o tratamento que seria mais radical, mais invasivo, mas que também achava que me traria mais benefícios: prostatectomia radical. Ou seja, remoção total da próstata.

E assim cheguei ao dia 4 de Março. Acordei da anestesia (a terceira em meio ano) com mais cinco furinhos na barriga. Tal como na vesícula (quatro furinhos), também esta intervenção foi laparoscópica pelo que posso agora exibir 9 belas cicatrizes na barriga. A recuperação desta vez não foi um “passeio no parque” como em Dezembro. Quinze dias algaliado foi desconfortável. Mesmo depois de removido aquele apêndice o conforto não voltou de imediato.

Voltando à questão velocipédica, quando da conversa com o médico sobre se devíamos avançar para a cirurgia, uma das questões que lhe coloquei foi o quanto isso iria impactar na minha actividade. Não me deu garantias, talvez para se proteger de me causar expectativas que podiam não se concretizar. Segundo ele, cada caso era um caso. Tinha tido um paciente que passados três meses estava a correr a maratona mas havia pacientes que ficavam com sequelas que os impediam de praticar desporto (incontinência em esforço, por exemplo). Esta conversa terá ocorrido algures em Dezembro. Pensei que era bom que aproveitasse para dar boas pedaladas enquanto podia porque para depois não tinha garantias…

Não resisti. Cerca de 6 semanas após a cirurgia, para irritação de minha mulher, voltei a montar a bicicleta. Estava farto de fazer caminhadas com a cadelita e com muitas saudades de pedalar. A posição na bicicleta não era totalmente confortável e tive de fazer um pequeno ajuste na posição do selim mas regressei a casa com vinte e tal quilómetros percorridos e um indisfarçável sorriso na cara. As semanas parado tinham destruído a minha condição física mas tentei obter satisfação com cada pequena dificuldade superada, com cada pequena evolução. As pedaladas foram ocorrendo cada vez com mais assiduidade, o processo de recuperação continua mas entretanto até já deu para regressar às viagens casa-trabalho. Antes da cirurgia tinha estimado que, se pudesse voltar a pedalar, provavelmente tal só aconteceria lá para o final do Verão. Ter regressado tão depressa animou-me bastante. Quando voltei à consulta com o médico e lhe disse que já pedalava ele não me repreendeu, apenas me aconselhou moderação. Mas o que significará isso para quem não anda de bicicleta, pensei? Enfim, adiante, talvez seja melhor não perguntar. Mas ao despedir-me disse-lhe que agora ele já podia dizer ao próximo paciente na mesma situação que, embora sem garantias, já tinha dois exemplos de tipos que recuperaram a actividade física: o da maratona… e eu!

Estes problemas não se resolvem assim de um dia para o outro. Apesar das boas sensações no pós-operatório a análise ao material removido concluiu que a situação era pior que a prevista pela biópsia. No entanto exames posteriores parecem indicar que tudo foi removido pelo que deverei ficar apenas sujeito ao acompanhamento de rotina. Se tem solução, porquê se preocupar? Se não tem solução, porquê se preocupar?

Se tem solução…

Recordando a Travessia do Dragão

Não tenho escrito muito neste espaço e aborrece-me que o motivo que me trás de volta seja o mesmo de há duas mensagens atrás. Recebi esta semana a notícia da morte do José Augusto Pereira (JAP). Já não tinha contacto com ele há algum tempo e a notícia podia não me ter chegado (pelo menos durante algum tempo) se não fosse a minha filha, aluna do ICBAS onde ele tinha já sido seu professor. De notar que também Rui “Major” Appelberg era lá professor mas não chegou a ter a oportunidade de ser sua aluna.

Ao receber a triste notícia não pode deixar de me vir à memória a Travessia do Dragão, aquela obra prima desenhada pelo JAP e pelo Major. Foi há 19 anos que fui convidado a participar nessa jornada. Nessa época a “pena fluía-me” com mais facilidade e duma assentada redigi a crónica desses dias que se viria a revelar muito popular em fóruns dedicados ao ciclismo de montanha, e também a inspirar outras jornadas (e respectivas crónicas) que se seguiram.

Existe este problema com as novas tecnologias que pode tornar a informação volátil, se não for acautelada a sua salvaguarda, e apercebi-me que esse relato já não aparecia nas pesquisas que fiz na internet. Lá acabei por o encontrar num arquivo pessoal. Já não relia o texto desde a altura em que o escrevi e foi engraçado recordar pormenores que já havia esquecido. Encontrei também algumas fotos e um amargo de boca gerou-se ao contabilizar que, dos cinco, três já cá não estão.

Rui “Major” Appelberg (1960-2020), José “Zé Rodas” Rodrigues, Professor Orlando Lemos (1954-2014), eu e José Augusto Pereira “JAP” (1963-2023)

Resolvi então voltar a publicar aqui o texto original, para o ir perpetuando e também como homenagem. Tal como foi escrito, sem revisões, à luz da experiência e da sensibilidade daqueles tempos. Resta-me dizer que, se existir experiência “do outro lado”, com estes três a preparar os trilhos aguarda-nos divertimento do bom quando lá chegarmos.

“Travessia do Dragão

De Melgaço até Chaves

8, 9 e 10 de Abril de 2004

O José Augusto Pereira (JAP) e o Rui Appelberg proporcionaram-me a mais fantástica das jornadada de BTT que alguma vez fiz. Sabendo o quão difícil seria descrever por palavras tudo aquilo por onde andámos, não resisti a fazê-lo enquanto a memória se encontra fresca.

ESTATÍSTICA:
Percurso:
Início: Lamas de Mouro (Melgaço)
Fim: Chaves
Tipo de piso: acidentado e com muitas zonas bastante técnicas
Distância total: 224km
Desnível acumulado: 6986m

1a Etapa (5a feira, 8 de Abril):
Lamas de Mouro – Campo do Gerês
Distância: 84km
Desnível acumulado: 2455m

2a Etapa (6a feira, 9 de Abril):
Campo do Gerês – Salto
Distância: 65km
Desnível acumulado: 2415m


3a Etapa (Sábado, 10 de Abril):
Salto – Chaves
Distância: 75km
Desnível acumulado: 2116m

OS PREPARATIVOS
O JAP e o Rui tinham avisado de que pouco mais seria necessário do que a carteira e a escova de dentes. O percurso iria ser duro e convinha ir leve. Pessoalmente, apesar de levar pouca coisa, resolvi montar um suporte e levar uma pequena mochila nas costas e o resto num pequeno saco no suporte. O Zé Rodas e o Orlando Lemos apresentaram-se de alforges. E o Orlando até um pequeno saco levava no guiador 🙂 O JAP lá o convenceu a deixar metade da carga mas mesmo assim ainda ficou bem aviado 🙂

A PARTIDA
Manhã de 5a feira. A travessia só se concretizou nesta data pois havia previsões de bom tempo para este período. E o céu estava realmente limpo mas a temperatura era bastante baixa. Lá nos despedimos da mulher do Zé Rodas, após uma fotografia da praxe e partimos por uma estrada de alcatrão descendente. Logo ali comecei a aperceber-me de que este passeio nos iria proporcionar paisagens invulgares: a estrada prolongava-se, ziguezagueando num longo vale até desaparecer no horizonte. Fez-me lembrar, salvaguardadas as devidas proporções, uma foto que vi algures na net do Stelvio, uma das míticas subidas dos Alpes.

A PRIMEIRA SUBIDA
Ataquei-a com precaução. Ia subindo suavemente pela encosta proporcionando uma bela visão de vales que se prolongavam por longos kilómetros. Em breve começámos a observar alguma neve que o sol dos últimos dias ainda não tinha conseguido derreter.

AS PRIMEIRAS PEDRAS
Não demorámos muito a entrar em contacto com aquilo que seria quase uma regra em termos de piso para este percurso: uma descida cheia de enormes pedras de arestas aguçadas onde máquinas e homens eram bastante abanados.

A AVARIA
Teríamos percorrido cerca de 20km desde a partida. Percorríamos então uma espécie de planalto quando o suporte do Zé Rodas partiu. A avaria era grave. Sem um aparelho de soldar :-), apenas com zip-ties, não havia grande coisa que se pudesse fazer. Depois de inúmeras tentativas para solucionar o problema a solução foi passar os alforges para o meu suporte que, por acaso, era perfeitamente compatível com estes.

SERÁ QUE ISTO RESULTA?
O peso extra dos alforges provocava um comportamento totalmente diferente da bicicleta. A descida seguinte foi um teste. Havia muita pedra e a traseira tinha perdido muita da agilidade. Mas dava para descer. Seguiu-se uma subida também com muita pedra. Como não era muito inclinada era relativamente fácil manter a frente no chão, apesar do peso extra na traseira, e a ascenção lá se fez. Portanto agora era só uma questão de força para chegar ao fim da etapa 🙂

PEDRAS
Havia sempre muita pedra! Quem já foi aos Carris pode ficar logo com uma idéia do piso que encontrámos em inúmeras subidas e descidas desta travessia.

A CAMINHO DO SOAJO
Pelas Brandas e Inverneiras (onde é que já ouvi isto? 😉 ). Flores amarelas surpreendiam-nos com um estranho mas agradável cheiro a baunilha (??). A descida tinha agora um piso que permitia velocidade elevada. Terminou junto a uma ponte sobre um ribeiro paradisíaco onde vacas e bois que por ali andavam vinham beber por entre as pedras. Entrámos então numa estrada que nos levaria até ao Soajo. Pelo meio um desvio para mais uma subida que nos levaria até mais uma descida radical, ainda que se tivéssemos optado por nos mantermos estrada o caminho seria mais directo e fácil. Mas “facilidade” era palavra que não fazia parte do dicionário deste evento.

A LIÇÃO DE HISTÓRIA
Sentados na esplanada dum pequeno café fomos interpelados por um sujeito curioso de saber a nossa proveniência e destino. Ficámos também a saber que se encontrava a meio duma “cruzada” para restituir à serra que tínhamos acabado de percorrer o seu verdadeiro nome. Segundo ele o nome da serra tinha sido desde sempre Serra do Soajo. Alegava ele que o nome de Serra da Peneda tinha resultado da incompetência ou ignorância dum capitão do instituto geográfico do exército que em tempos tinha andado por ali a fazer uns levantamentos topográficos…

BATENDO NO FUNDO
A travessia da ponte sobre o Rio Lima, junto à central do Lindoso, assinalou o ponto de cota mais baixa do percurso. Não seriam de esperar facilidades para sair dali 😉

AGORA É QUE A CARGA INCOMODA
A seguir a Paradamonte seguiram-se uma série de estreitos caminhos ascendentes, de pendente acentuada e com muita pedra e degrau. As pedras eram desta vez bastante polidas e era necessário quase que escalá-las. Aqui o peso extra dos alforges incomodava bastante e era sempre bem vinda uma ajudinha para ajudar a avançar um ou outro troço.

UM SINGLE-TRACK DE SONHO
Foi talvez o apogeu desta primeira etapa. Uma descida estreita, pouco visível devido aos arbustos que escondiam uma ou outra pedra traiçoeira. A inclinação era bastante acentuada, convidando a puxar o traseiro bem para trás, e o precipício que a ladeava não era aconselhado a quem sofra de vertigens, especialmente durante as várias curvas a 180º que era necessário negociar com muiiiiitoo cuidado. Algumas vezes pensei em interromper a descida mas as coisas foram correndo bem e chegámos cá abaixo para sermos brindados por mais um trialeira que terminava junto a um ribeiro de águas cristalinas.

A CAMINHO DO GERÊS: A VIA SACRA
Passado algum tempo estávamos no asfalto que nos levaria até à barragem de Vilarinho das Furnas e, logo de seguida, a Campo do Gerês onde terminaria esta primeira etapa. A subida ia ser longa, só terminando em Brufe. Inicialmente não houve problema mas à medida que a subida se foi prolongando e acentuando a inclinação o peso extra dos alforge do ZR na minha bicla começou a fazer estragos. Comecei a perder cada vez mais terreno para o JAP e o Rui. O ZR mantinha-se à minha beira para me acompanhar. Não havia maneira de ver o final da subida, nem a olho nem no GPS, e posso dizer que passei neste período os piores momentos de toda a travessia, desesperado, tentando engendrar mil-e-um esquemas que me tirassem daquele filme 🙂

GERMIL
Reagrupámos em Germil. Apesar de tudo só tínhamos perdido alguns minutos para o JAP e para o Rui. O Orlando também já vinha com algumas dificuldades. Como, em alternativa à estrada, havia umas trialeiras interessantes antes de Brufe mas onde era necessário subir mais um pouco, achámos melhor dividir temporáriamente o grupo. Eu e o Orlando, que também já vinha com algumas dificuldades, optámos por poupar as forças seguindo por estrada calmamente até Brufe onde nos voltaríamos a reunir ao resto do grupo. Foi uma decisão bastante acertada: chegámos calmamente antes deles que ainda por cima vinham bastante cansados daqueles kms de esforço extra.

O FINAL DA 1ª ETAPA
A descida para a barragem de Vilarinho das Furnas fez-se através duma estrada que percorria uma garganta rochosa que naquela altura era percorrida por um vendaval gélido que nos obrigava a pedalar apesar da inclinação da descida (!!). A mulher do ZR apareceu lá com uma mochila e uma travessa de aletria 🙂 Finalmente ia-me ver livre dos malditos alforges 🙂 Tomámos um banho retemperador, jantámos uma deliciosa vitela assada com a aletria da esposa do ZR como sobremesa e a noite não teve muito mais história porque o que o pessoal queria era dormir.

SEGUNDO DIA
Lá arrancámos, após o pequeno-almoço, agora já com o ZR em versão “mochileira”. Liberto do lastro do dia anterior ataquei com fulgor o asfalto que nos levaria ao Cabeço da Calcedónia. Neste segundo dia, ao contrário do anterior, conhecia grande parte do trajecto que iríamos percorrer. Mas nem isso fez esmorecer o meu entusiasmo, aquelas paisagens são sempre deslumbrantes, independentemente do número de vezes que já lá passámos. Uma descida rápida e sinuosa levou-nos até perto da vila do Gerês onde atacámos então os cerca de 6km de subida que nos levavam até à Pedra Bela, num percurso semelhante ao do I Passeio de Verão da V@, em 2001.

DO ARADO À PIGARREIA
Estava com saudades de fazer este troço que um dia tinha descoberto por recurso às cartas militares. Depois de passarmos a ponte sobre o rio Arado, perto da respectiva cascata, uma pequena subida levou-nos ao início duma longa descida de paisagens deslumbrantes e com uma parte final extremamente inclinada, cheia de ganchos e terra mole. Infelizmente as zonas técnicas da parte inicial foram removidas devido a alguma manutenção que foi feita recentemente aos caminhos. Em compensação foi possível fazer a descida a maior velocidade 🙂

SALAMONDE: MEIA JORNADA
Pequena subida por asfalto até Fafião, descida por terra a alta velocidade até à barragem e mais alguns kms de subida por asfalto levaram-nos a Salamonde. Estaríamos então sensívelmente a meio da jornada daquele dia. As dificuldades não tinham sido muitas. Aquele ritmo iríamos acabar cedo. Parámos algum tempo num café para reforço alimentar antes de atacarmos a 2ª metade do trajecto.

A VACA!
Ataca!. Era este o grito de guerra do Rui quando uma dificuldade se aproximava. Tipo curioso, este Rui… O cabelo e bigode castanhos claros e um peculiar sentido de humor dão-lhe o aspecto dum fleumático major do exército de Sua Majestade, no entanto tinha estes tiques extrovertidos. Gritos de “Ataca!” ao aproximarem-se subidas difíceis e um olhar esgazeado com baba quase a escorrer-lhe pelos cantos da boca quando se avizinhavam as “tenebrosas” (falamos das descidas, claro). O Orlando confessou-me ficar apreensivo com estas reacções :-)))) Mas tudo isto a propósito da vaca. É que o grito do Rui fazia antever dificuldade da grossa… e começou ainda dentro da aldeia, com uma sucessão de inclinadas rampas em paralelo que depois se transformaram em terra, depois em pedra e, finalmente, numa erva mole que prendia as rodas. Tudo isto para nos levar ao Alto da Vaca. Solidáriamente toda a gente fez a maior parte da subida “a penantes”, com excepção do JAP que deve ter feito uma grande parte montado. Raios parta a vaca da subida! 🙂

O TALEFE DE NOVO
Ia ser a minha 3ª ascensão ao Talefe (alto da Cabreira) em 4 semanas! Mas desta vez íamos dar uma volta maior, julgando eu que seria por isso mais suave a subida, relativamente aquela que tínhamos feito no passeio da V@ da semana anterior. Mas em vez de começarmos logo a subir, descemos !!?? Durante a descida, inclusive, esteve para haver um grave acidente com um cavalo selvagem escondido nos arbustos da berma e que assustado com a nossa passagem se atravessou inesperadamente à minha frente 😦 E começa a subida. Suave??? Bom piso??? Nada disso! Longa, por vezes inclinada e com um piso intragável, coberto de pedras! Apesar disso sentia-me bem e ia subindo sem grandes problemas. O mesmo não se podia dizer do Orlando e do ZR que não estavam a atinar muito bem com aquela subida. Curiosamente, quando já tinham passado as maiores dificuldades, tive, repentinamente, uma estranha sensação de fome. Não tinha comido nada desde Salamonde. Que erro estúpido, pensei. Apesar de ainda me sentir bem fisícamente resolvi parar para comer algo antes que a situação se agravasse. Só que quando recomecei a pedalar as forças já não eram as mesmas e lá me fui arrastando penosamente ao longo do final da subida assolada por um vento forte e gélido, digno duma qualquer tempestade numa região polar. Abrigados do vento pela parede duma das construções existentes no topo, aí descansámos um pouco antes de abandonarmos o pico. O Orlando e o Rui foram à volta pelo estradão e eu fui mostrar ao JAP e ao ZR a descida hardcore do passeio da V@ o que valeu ao primeiro uma cambalhota que teve como consequências um torcicolo e uma dor persistente numa costela 🙂

SALTO: O FINAL DA SEGUNDA ETAPA
Antes do final, oportunidade ainda para fazer alguns kms de single-track que teve tanto de belo como de técnico, com as omnipresentes pedras aguçadas. Depois um estradão que subia muito ligeiramente levou-nos até perto do Salto. No último km, já dentro da localidade, fomos ainda surprendidos por um empedrado muito divertido. pedra até ao último minuto 🙂

FEBRE DE SEXTA À NOITE
Apesar de ser sexta-feira santa o restaurante da pensão onde ficámos alojados estava apinhado de gente sequiosa, tal como nós, da famosa posta barrosã. A estalajadeira, D. Maria, mulher dum carisma muito especial que mantinha tudo e todos na linha lá ia dando conta do recado. Hilariante e ilustrativa a resposta que deu ao Orlando quando este disse que o que seria bom para a sobremesa seria uma laranja descascada. Resposta pronta de D. Maria: “Pois seria muito melhor se a descascasse você!” :-)))))) Isto só serviu para nos animar mais nesta noite em que por efeitos, talvez, dos néctares do Alentejo estavamos bastante alegres e “desinibidos” 😉 Até a fleuma do Rui se mostrava incapaz de resistir às tiradas do Orlando :-))))

TERCEIRA ETAPA
Depois de nos despedirmos de D. Maria, que nos tinha preparado o pequeno almoço e pedido para assinarmos um livro de visitas em estreia absoluta, fizémo-nos à estrada com o Rui já a salivar antevendo as “tenebrosas” que estavam reservadas para este último dia.

AS TENEBROSAS
E não tardaram em aparecer. E foram tantas que é difícil situá-las no espaço e no tempo. Lembro-me especialmente de duas. Na primeira só desmontámos quando nos apercebemos da loucura que estávamos a cometer e já com o JAP enfiado nos verdes da berma. A descida era suposto ser muito técnica mas aquilo era demais. Afinal tínhamos apanhado o caminho ligeiramente ao lado. O tenebroso trilho correcto estava mais abaixo. O que estávamos a fazer tinha-se tornado impossível. O Orlando finha descendo a pé e murmurando um conformado “Cristo não andou por aqui!” 🙂 A segunda começava com um apertado trilho, quase um without-track, pelo meio de mato denso e depois de alguns drops e muita pedra tornava-se demasiado inclinado e traiçoeiro para fazer montado, terminando num pequeno vale onde corria um ribeiro de águas cristalinas e onde nas verdejantes margens nos sentámos para descansar e comer algo.

SUBIR PELO PRAZER DA CONQUISTA
Curioso que, apesar do risco de encontro com o Homem da Marreta, a “organização” nunca deixou por mãos alheias a oportunidade de visita aos inúmeros parques eólicos e marcos geodésicos das regiões por onde passávamos. Em duas ocasiões, pelo menos, Armada e Leiranco, deram-se ao luxo de nos proporcionarem alguns kms extra de ascenção só para visitarmos os respectivos picos, voltando depois novamente para trás. Bem hajam pelo reforço da minha colecção de vértices geodésicos 😉

O RASPANETE
Em Alturas do Barroso, lembrando-me do descuido com a alimentação no dia anterior, resolvi pedir à senhora do café uma sandes de pão de centeio e salpicão caseiros 😉 A senhora demorou algum tempo a prepará-la e quando me preparava para a saborear já quase todos tinham acabado de comer. O JAP, quando se apercebeu, censurou-me: “Ainda agora é que vais comer isso? Estás demasiado acostumado aos passeios do Jorge Moniz!” :-)))))))

NÃO ULTRAPASSEM OS GUIAS
Após a barragem dos Pisões havia uma longa e cansativa subida. Terminada esta era altura de descer. O piso era bom e a velocidade elevada. Tão elevada que o ZR nem se apercebeu dos gritos do JAP e continuou por lá abaixo, até ao fundo, quando devia ter virado à direita :-)))))

O LEIRANCO
Neste terceiro dia não me sentia com grandes forças, tinha andado o dia todo a gerir as energias. Estava a ficar preocupado. A dificuldade do dia era suposto ser o Leiranco mas já tínhamos feito tanto sobe e desce e nada de Leiranco. Mas ele lá acabou por aparecer. A subida não foi muito inclinada nem teve zonas técnicas, conforme o JAP tinha prometido. Ele, o ZR e o Orlando subiram num ritmo que me pareceu infernal e resolvi por isso deixar-me ir no meu ritmo, com o Rui umas dezenas de metros lá atrás. Depois de alguns kms lá atingimos o topo da última grande dificuldade donde já pudemos observar Boticas e… Chaves!

A DESCIDA
Descer o Leiranco foi um dos pontos mais altos destes 3 dias. A loooongaaaa descida pela encosta, inicialmente apenas perturbada pela densa vegetação mas onde rápidamente apareceram as… sim, as pedras. Só que desta vez acompanhadas pelos seus colegas buracos e regos 🙂 Apesar de tudo só o Rui acabou por se encaixar num desses regos e ao fim de algum tempo a descida lá terminou, para grande pena nossa.

OS ÚLTIMOS KMS
Depois do Leiranco não esperávamos nada de especial até Chaves. Mas mais uma vez fomos surpreendidos. Além de bonitos caminhos rurais ainda fomos presenteados com uma série de single-tracks e mais algumas descidas técnicas que só terminaram quando estávamos praticamente dentro da cidade. À nossa espera estava a mulher e a filha do ZR com deleciosas sandes de presunto e pão de Amarante. Congratulámo-nos mutuamente pela excelente jornada que tínhamos acabado de concluir. Pessoalmente sentia-me bem, contemplativo. Efeito das endorfinas, dizem 🙂

EPÍLOGO
Despedimo-nos do ZR e da família mas para os restantes ainda tínhamos alguns kms de estrada para cumprir até ao carro do JAP guardado em casa dos sogros. E depois a mais longa das jornadas: o regresso de carro a Lamas de Mouro para ir buscar os carros que lá tinham ficado. Eu e o Orlando só chegámos a casa pelas 2:00 da manhã de Domingo!”

Recordando a Travessia do Dragão

Reinventar o prazer de pedalar

Durante a pedalada matinal de hoje dei por mim a pensar no porquê da bicicleta. De imediato me ocorreu um pensamento recorrente que em tempos verbalizava com frequência: andar de bicicleta é daquelas actividades que podemos praticar sem necessitar da companhia de ninguém! Não será a única. Logo me ocorre a pesca, aquela prática que me parece tão atractiva em momentos de grande empeno, lamentando profundamente nessas alturas não ter abraçado tão aprazível actividade em que ficamos sentados à beira rio a aguardar que a cana vibre.

Commuting no Parque Oriental da cidade do Porto

Ao longo dos anos tenho tido muitos companheiros de pedalada, incluindo daqueles que fazem juras de amor eterno à arte de dar ao pedal. Mas mais tarde ou mais cedo acabam por se afastar. Começam com as aparições irregulares às voltas de fim-de-semana, justificadas com um qualquer compromisso. Depois a desculpa de que é apenas uma situação temporária. E passa a definitiva. E lá voltamos ao “felizmente que andar de bicicleta é daquelas actividades que podemos praticar sem necessitar da companhia de ninguém”! Mas muitas vezes é mais agradável com companhia e esse constante “roer da corda” magoa. Ficamos mais amargos e desconfiados. Dantes, quando vinha à conversa com alguém o tema das bicicletas, desdobrava-me em histórias de como era divertido e incentivava o interlocutor a experimentar, sempre na esperança de obter mais um incauto. Hoje em dia já não tento recrutar ninguém. Mesmo com os parceiros que ainda vou tendo (incluindo o meu próprio filho) faço um esforço racional para não criar fortes ligações velocipédicas pois acredito que mais cedo ou mais tarde um qualquer compromisso os vai afastar. A solução tem sido ir reinventando a paixão, sabendo que só posso contar comigo. Não apetece BTT. E que tal a estrada? Ou talvez uma perspectiva diferente dos trilhos com uma singlespeed rígida… No último ando comecei a interessar-me pelo commuting, efectuando várias vezes por semana deslocações casa-trabalho. Não vou cair na hipocrisia de afirmar que o faço preocupado com questões ambientais ou económicas. Faço-o porque me permitiu mais uma vez reinventar o prazer de andar de bicicleta. Acho piada ao fluir pelo trânsito da cidade. Comecei a apreciar as ciclovias. Conheci caminhos pelo meio dos parques. Descobri que tanto me sinto desafiado a pedalar nestes ambientes como a subir o mais terrível caminho montanha acima. E é assim que tenho continuado a acumular quilómetros em cima do selim.

Reinventar o prazer de pedalar

Em memória

Há quem diga que este ano de 2020 foi terrível por causa duma pandemia provocada por um vírus. Como isto é um blog pessoal posso escrever aqui o que bem me der na gana: estou cagando para a suposta pandemia e para a merda das regras que vieram a reboque. Segui algumas regras que me parecem razoáveis, segui outras para não melindrar quem não concorda comigo mas de resto fiz a minha vida normal, trabalhei da forma habitual e fui quase sempre e quando quis aos locais onde me apetecia ir. Por isso não recordo 2020 como um ano mau por causa da virose (embora talvez o venha a recordar assim por causa da resposta institucional à mesma).

Mas recordarei sempre 2020 como o ano em que morreu um amigo e uma referência. Assim, de repente, sem uma justificação. Já lá vão uns meses, pensei que o tempo iria dissipar o sentimento de perda mas tal não se tem verificado. Amanhã este texto não vai receber o seu comentário mordaz. Aquele telefonema ou e-mail que aparecia, assim do nada, de longe a longe a combinar um encontro à hora certa da manhã gelada numa qualquer beira da estrada remota, não se voltará a repetir. Nunca mais terei vontade de saborear as laranjas de Turiz.

Quando comecei a escrever este texto o objectivo era deixar aqui uns apontamentos e umas fotos relatando os dias de pedalada no período festivo. Mas o fluir da escrita levou-me a falar sobre este companheiro, talvez porque também durante essas pedaladas (e todas as outras desde a notícia da sua morte) a sua memória esteve sempre presente. Tudo o resto se tornou irrelevante, o primeiro parágrafo foi apagado, o título do post foi substituído e as fotos removidas. Apenas aqui fica esta memória digital, uma de muitas, obtida num daqueles dias mágicos, já lá vão uns bons anos. Até já, Major. Lá nos encontraremos para daí seguirmos juntos, como sempre, ritmo lento e poucas paragens.

Rui Appelberg Gaio Lima (1960 – 2020)

Em memória

A nossa Nacional 2

Os preparativos

O viajante é um perscrutador do mundo que o rodeia e aquilo que vai
indagando regista-o no seu diário de viagem (…) Dependendo da orientação da sua atenção e da finalidade daquilo que quer registar, o desenhador optará ainda pela omissão de determinados pormenores considerados
secundários ou, pelo contrário, pelo registo realçado dos mesmos, por achar que estes pormenores devem assumir um valor importante.
in “Desenhando em Viagem, os cadernos de África de Roberto Ivens” de Mara Taquelim

Numa volta de Domingo de manhã o Tico anunciou a intenção de aproveitar a semana com dois feriados para ir fazer a N2. Assim de repente e sem férias marcadas limitei-me a desejar-lhe boa viagem, sem colocar a hipótese de o acompanhar. Mas dos projectos mais populares para fazer de bicicleta este era um dos raros que me despertava verdadeiramente o interesse.

Passados uns dias, talvez numa 3ª feira à tarde, na semana anterior à jornada, recebi um telefonema dele a pedir ajuda para lhe preparar as etapas para carregar no GPS. Perguntei-lhe que pontos de paragem tinha previstos e disse-lhe que tentaria fazer algo nessa noite, se tivesse tempo. Na verdade até foi rápido, com recurso ao RideWithGPS e aos mapas do Google com o indispensável StreetView. Mas desengane-se quem pense que foi só clicar em pontos da N2 assinalados no mapa e deixar o software fazer o resto. Apesar de estar longe de ser um conhecedor das características desta estrada sabia bem que não se trata duma estrada homogénea mas sim dum conjunto de troços de características diferentes. Por exemplo, nas férias de 2019 tinha andado para os lados de Vila de Rei e percebido que a actual N2 naquela zona se tinha transformado numa via rápida que chegava a ter 3 faixas em algumas zonas. Sabia também que nessa zona havia um troço da N2 original que tinha sido requalificado como estrada municipal. Com esse alerta em mente tentei avaliar, muitas vezes recorrendo à precisosa ajuda do StreetView, as condições da estrada por onde estava a traçar o percurso. Isso levou a um desenho mais criterioso onde, sem qualquer remorso, certos troços da N2 foram substituídos por outras estradas ou caminhos que me pareceram muito mais interessantes. O trabalho da primeira noite ficou por aí. Não enviei de imediato os ficheiros para o Tico pois na noite seguinte ainda iria recorrer ao flyby do GoogleEarth para confirmar que não havia pontas soltas no projecto. Teria ainda de lhe dar algumas dicas sobre como lidar com essas nuances do percurso.

Na segunda noite, como planeado, revi o percurso e, ao sabor do desenrolar do trajecto no monitor do PC, ia despertando aquele sentimento de quem “entrega um filho para adopção”. Caramba, isto tem potencial para ter muita piada… Apercebendo-se disso a família começou a incentivar-me. No dia seguinte liguei ao Tico a anunciar que tinha acabado de ganhar um guia para a viagem se tratasse de reservar alojamento também para mim. De momento restavam-me dois dias de concentração total no trabalho para deixar tudo em dia e poder antecipar uns dias as férias.

No Sábado de manhã demos a habitual volta. Nas calmas mas até um pouco mais longa do que o que seria aconselhável. À tarde combinámos o que íamos levar. Para aqueles que pensem efectuar o percurso e necessitem duma ideia, aqui fica o inventário.

Coisas comuns: o Tico levou as ferramentas; eu levei o protector solar (pequena embalagem de spray, já com apenas 1/4 do produto e validade expirada em Março), uma embalagem com um resto de pasta de dentes, um pedaço de corrente, um elo rápido, remendos e cola.

Cada um levou ainda uma bomba de ar, uma câmara, um kit de luzes e uma máscara para entrar em locais onde fosse necessária, atendendo às omnipresentes regras da Covid-19. Documentos, cartão de débito e telemóvel não podiam faltar. Levei ainda a pequena Canon numa bolsa ao peito, na minha opinião muito mais prática que o telemóvel para tirar fotos. O Tico levava a GoPro presa no guiador. O meu GPS utiliza duas pilhas AA pelo que tive de transportar o respectivo carregador assim como um carregador para o telemóvel. Para a Canon não achei necessário pois a bateria devia aguentar perfeitamente os 6 dias, como se veio a verificar. Na bicicleta transportávamos 2 bidons, que íamos enchendo conforme as necessidades de cada etapa.

Equipamento para pedalar: sapatos de estrada, meias, calções, jersey, corta-vento sem mangas (quando necessário), capacete e óculos. Equipamento para a noite: calções, t-shirt, corta-vento com mangas, uma cuecas e um par de havaianas (sabrinas, no caso do Tico).

A minha mochila

Para o transporte de tudo isto as opções foram diferentes: eu optei por transportar uma mochila às costas, o Tico optou por uma bolsa, que apelidámos de “chouriço” presa por baixo do selim. À frente falarei de novo sobre estas opções.

Prólogo, Delães a Chaves

A N2 liga Chaves a Faro mas o projecto do Tico implicava sair de casa. Uma espécie de prólogo de 150km de Delães até Chaves. Pelas 9h da manhã de Domigo lá nos encontrámos no sítio do costume e arrancámos sem qualquer celebração, como se nos dirigíssemos para apenas mais uma volta matinal. O Fontão também apareceu e acabou por nos acompanhar até à Póvoa de Lanhoso.

Escolhemos ir pela N103 pois pareceu-nos ser um trajecto mais directo e acessível, comparado com a alternativa Cabeceiras-Salto, bastante mais acidentada. Não acumularíamos tanto desgaste nas pernas.

A N103

Tratando-se dum percurso sobejamente conhecido por nós não houve novidades a registar. Mas cedo comecei a duvidar da opção de levar a mochila às costas. Uma moinha na zona lombar teimava em deixar-me desconfortável. Parámos em Ruivães para comer qualquer coisa e reparo noutro problema: tinha os sapatos de estrada com a boca aberta! Uns sapatos que me foram oferecidos, confortáveis e de que até gosto, mas que não primam pela qualidade de fabrico. O problema já tinha surgido pouco depois de os estrear mas julgava ter ficado resolvido depois duma visita ao sapateiro para aplicação de cola. Pelo vistos não ficou e, como é dever da Lei de Murphy, teria de se manifestar de novo precisamente no início desta jornada. Duvidei que aguentassem os 800km que restavam até Faro.

Eu e a mochila (foto Tico)

Tentei abstrair-me dos problemas mas com as costas a doer e os sapatos em desmoronamento aquele primeiro dia não estava a ser lá muito divertido. Só queria chegar rapidamente a Chaves e tentar arranjar alguma solução. Mas até um vento frontal e fresco, que me obrigou a vestir o corta-vento nos últimos kms, parecia querer atrasar esse objectivo. Mas lá chegámos a Chaves.

Confesso que só depois de me decidir a acompanhar o Tico é que soube da existência do passaporte para registarmos o nosso trajecto. Não fazia questão, bastava-me o prazer de pedalar e as fotos, mas lá fomos ao posto de turismo obter um livrinho amarelo para cada um. Admito agora que é uma recordação engraçada.

De seguida procurámos o alojamento que o Tico tinha reservado, uma agradável pensão bem no centro histórico, perto do castelo e começámos aquela que seria a rotina à chegada deste e dos dias seguintes. Tomar banho e lavar a roupa de ciclismo. Abordagem mais tradicional a minha, com lavagem no lavatório. O Tico optou por um 2 em 1, banho e lavagem de roupa simultâneo, numa espécie de pisar de uvas debaixo do chuveiro. Para ajudar a secar fomos recorrendo à “técnica do Major” que consiste em enrolar numa toalha e pisar bem o rolo obtido na esperança que a maior parte da água seja absorvida pela toalha. Depois era só tentar improvisar um estendal na janela e ter esperança que o vento ajudasse a terminar de secar.

Antes de arranjarmos um sítio onde comer e beber ainda fomos a tempo de encontrar uma tabacaria aberta e comprar uma embalagem de super-cola que utilizámos para voltar a colar os meus sapatos. A super-cola continuou a acompanhar-nos até Faro mas não foi novamente necessária pois cumpriu com excelência a sua função.

1ª etapa, Chaves a Viseu

Acordámos pelas 8:00, tomámos o pequeno almoço e pelas 9:00 estávamos a arrancar com as bicicletas. Havia também de ser essa, aproximadamente, a nossa rotina nas etapas seguintes.

Dirigimo-nos à rotunda onde se situa o marco do Km 0. Aquela hora já se encontravam lá alguns motociclistas a tirar a foto da praxe antes de partirem, também eles, em direcção a sul.

Km 0

Começámos a pedalar com muita moderação. Não sabíamos se as pernas estavam totalmente recuperadas do dia anterior e não sabíamos como iam reagir ao acumular das etapas dos próximos dias. Em breve começaram a desfilar no nosso caminho nomes ligados ao negócio da água: Vidago, Salus, Pedras Salgadas… Seria precisamente em Pedras Salgadas que faríamos a primeira paragem para carimbar os nossos passaportes. Seguiu-se Vila Pouca de Aguiar e Vila Real, onde parámos também no Burger King para almoçar.

Entretanto um ajuste nas alças da mochila que tinha feito na noite anterior parecia estar a resultar. Nem neste dia nem nos que se seguiram as dores lombares provocadas pela mochila voltaram a se assunto. Sendo assim não me arrependi da escolha, até porque, embora não sendo grave, o Tico também teve alguns problemas com a oscilação do “chouriço” e com o efeito do vento lateral no mesmo.

A tarde adivinhava-se quente mas supostamente seria sempre a descer de Vila Real ao Peso da Régua. Na verdade não é bem assim mas as dificuldades iam sendo atenuadas pela beleza da paisagem que se ia desenrolado aos nossos olhos e que nos fez parar algumas vezes para a contemplar e registar em foto. Por aquelas bandas parece que apostam em explorar o potencial turístico da N2, a prová-lo o marco comemorativo dos 75 anos da mesma existente em Santa Marta de Penaguião.

Peso da Régua. Depois de atestados os bidons com água fresca para a longa ascensão até ao alto de Bigorne, atravessámos o Douro e encetámos a primeira fase da subida até Lamego. Encontrámos um bom ritmo e rapidamente vencemos estes primeiros cerca de 10km. Pelo caminho ultrapassámos um outro ciclista que descansava ou telefonava numa sombra da estrada. Mais tarde verifiquei no Strava que tinha um projecto semelhante ao nosso.

Após mais uma rápida paragem para carimbar em Lamego reiniciámos a ascensão. Uma inclinação mais acentuada à saída da cidade foi gradualmente sendo substituída por outra mais suave. O piso degradou-se, prejudicando o rolar dos pneus e o meu físico também. Sabendo que possivelmente só íamos ter uma paragem em condições para reabastecimento em Castro d’Aire comecei a defender-me, andando no elástico, só o suficiente para não perder o Tico de vista. A táctica resultou e chegámos juntos ao alto. A descida até Castro d’Aire foi retemperadora assim como a pausa que fizemos na simpática pastelaria onde foi também possível colocar mais um carimbo no passaporte.

A natureza caprichou por aquelas bandas e a estrada, serpenteando entre vales, é protegida por arvoredo que a torna bastante fresca. Talvez demasiado fresca para quem descia envergando apenas uma jersey aquela hora da tarde.

Uma placa indicava um corte da estrada e sugeria um desvio. Curiosamente o track que eu tinha desenhado também sugeria esse desvio. Pelos vistos o Tio Google também era conhecedor do problema. Como desconhecíamos a extensão do obstáculo caso seguíssemos pela N2 resolvemos aceitar o desvio. Seria também uma oportunidade para conhecermos outros caminhos.

Foi engraçado. O desvio levou-nos para estradas secundárias e estreitas que não têm as mesmas preocupações com a qualidade do piso ou em poupar os utilizadores ao gradiente do terreno. Quase que passávamos pelos quintais das poucas habitações que por ali existem. Um miradouro proporcionava uma vista romântica sobre a vila que tínhamos acabado de atravessar.

Na aproximação a Viseu fomos brindados com uma série de 3 ou 4 subidas que nos “aqueceram a colaça” mas lá chegámos à cidade das rotundas e ao conforto do hotel para a rotina do costume: tomar banho, lavar roupa, comer e beber, descansar.

2ª etapa, Viseu a Pedrogão Pequeno

Lá arrancámos pela hora do costume. Desta vez a roupa não havia secado devidamente e foi com algum desconforto que a coloquei no corpo. Foi coisa de minutos, passado um km em cima da bicicleta já estava seca.

A etapa anterior, com mais de 170km de extensão, deveria ser a mais longa. Mas para esta etapa, embora mais curta, previa-se um acumulado de subida da mesma ordem de grandeza. Além disso uma análise prévia do gráfico de altimetria dava a entender que a maioria desse acumulado surgiria na segunda metade da mesma. Isso confirmou-se logo pela manhã com um trajecto bastante acessível. Atrevo-me a dizer que foi a etapa com o início mais suave de todas.

Esta foi também a etapa onde pela primeira vez o trabalho de casa no desenho do trajecto começou a dar frutos. A partir de Tondela a N2 começa a ser uma paralela ao IP3, tornando-se depois de Sta Comba Dão numa pequena faixa de asfalto que mais se assemelha a um acesso de manutenção à via rápida. Depois, com a aproximação da Barragem da Aguieira, acaba por desaparecer. Víamos alguns motociclistas parados em cruzamentos indecisos sobre o sentido a seguir mas nós íamos avançando sem dúvidas, confiando no traço carregado previamente no GPS.

A seguir à barragem a N2 (ou IP3) segue durante alguns kms pela margem direita do Mondego mas nós optámos por seguir pela bucólica e deserta estrada da margem esquerda. Com mais alguns improvisos para evitar o IP, que incluiram algum sobe-e-desce e talvez alguns insultos também, lá voltámos à N2 na aldeia de Raiva (esta fica na margem esquerda do Mondego, não confundir com a outra, as muitos kms dali, na margem esquerda do Douro).

Foi também aí que resolvemos parar para almoçar e descansar um pouco. O sol estava quente e um restaurante de ar acolhedor na beira da estrada com várias carrinhas e camionetas estacionadas à porta prometia qualidade e preço baixo. Fomos atendidos por uma empregada que parecia assustada com a patroa exigente. A escolha não era muita. Optei pelas moelas e o Tico por lulas. Pode não ser a opção mais óbvia para quem pedala mas era o que havia.

Foi com preguiça que voltámos à estrada. Tondela seria o próximo “posto de picagem”. Só que Tondela fica na outra margem do rio, lá a meio da encosta, e nenhum dos dois achou que valesse a pena o dispêndio de energia e tempo. Contentámo-nos com o carimbo disponibilizado por uma bomba de gasolina logo ali na berma e seguimos viagem.

Uma viragem à esquerda e uma pequena mas inclinada subida anunciaram também uma inflexão nas características do percurso. Pouco depois passávamos em Vila Nova de Poiares que, pessoalmente, me surpreendeu por uma aparente animação industrial que não esperava encontrar no interior do país. Ainda que os desníveis não fossem acentuados, começávamos agora a percorrer uma estrada com características de montanha, serpenteando por encostas com panorâmicas sobre vales que se estendiam até onde a vista alcançava.

Chegámos a Góis, localidade onde só tinha passado uma vez quando há 7 anos atrás participei num Granfondo pela serra da Lousã. Na altura não devo ter apreciado devidamente pelo que para ambos foi como se fosse a primeira vez. Ficámos agradavelmente surpreendidos e com vontade de voltar. Passámos por vários locais fantásticos ao longo desta viagem mas Góis reúne unanimidade quanto à impressão que deixou.

A longa subida que se seguia, pela encosta da serra da Lousã, convidava a acelerar o ritmo mas, consciente e voluntariamente, tivemos o bom senso de baixar a cadência. Isto não era o tradicional passeio de Sábado, amanhã e nos dias seguintes haveria mais e era necessário dosear o esforço.

Passada a cumeada seguiu-se uma agradável, rápida e sinuosa descida que nos levou ao marco do km 300 onde parámos para o assinalar. Um pouco à frente parámos no destacamento de Alvares dos bombeiros de Góis onde obtivemos o carimbo desse km 300 e aproveitámos para reabastecer os bidons com água fresca.

O sobe e desce que se seguiu até Pedrogão Grande trouxe um desgaste inesperado, atenuado pela passagem pelas localidades de Picha e Venda da Gaita, cujas placas despertam sempre um sorriso maroto e distraem o cansaço.

Em Pedrogão Grande carimbámos o passaporte no quartel dos bombeiros. Quando lhes dissemos que tínhamos alojamento do outro lado da barragem, em Pedrogão Pequeno, começaram a rir. No hotel? Exactamente, respondemos. Então quando forem a atravessar a barragem olhem lá para o alto, não tem que enganar. Era verdade. Vimo-lo de imediato. Aquilo era uma espécie de Kehlsteinhaus (o Ninho da Águia de Hitler), situado lá no alto, sobranceiro à estrada e à albufeira. Claro que teríamos de trepar, e bem, para vencer aquelas últimas centenas de metros. Uma espécie de calvário no final do dia, devidamente assinalado pelas cruzes na beira do caminho que indicavam a aproximação duma capela erigida no mesmo cume. Insultei o Tico pela escolha enquanto ziguezagueávamos rampa acima e fiz questão de fazer notar à recepcionista que aquele hotel não era nada “bike friendly”.

Depois daquela surpresa resolvi, depois de jantar, verificar onde ficava exactamente o alojamento no final da etapa do dia seguinte, que devia terminar em Montargil. Em boa hora o fiz pois o Tico, inadvertidamente, tinha marcado o alojamento para Ponte de Sôr, 24 kms antes! Podíamos parar em Ponte de Sôr mas a etapa ia ficar um pouco curta e a do dia seguinte ia ficar ainda mais longa. Pegámos no smartphone e começámos a procurar alternativas. Deparámo-nos com uma interessante no Couço. Implicava um desvio de alguns kms da N2, a seguir a Montargil, mas não havia necessidade de voltar para trás pois podíamos apanhá-la de novo um pouco à frente, em Mora. Além disso, segundo o Street View, pareciam tratar-se também de estradas agradáveis pelo meio da planície ribatejana. Como ainda não era demasiado tarde, telefonámos e reservar o novo alojamento e a cancelar o anterior.

3ª etapa, Pedrogão Pequeno a Couço

Pedrogão Pequeno fica junto a Pedrogão Grande, na margem esquerda do Rio Zêzere, mas pertence ao conselho da Sertã. Julgo que a informação poderá ser importante para o leitor desta crónica. Quem sabe não será esta a resposta correcta para o prémio de 50000 euros num qualquer concurso televisivo. Ou que o Rio Ceira passa em Góis. Viajar, já se sabe, melhora a nossa cultura.

O nosso país tem coisas fantásticas em todas as regiões mas há coisas que são mais fantásticas numa região que noutra. Sou de opinião que só há pão digno desse nome do Mondego para baixo. Para norte há muita variedade de “pão” mas nenhuma delas se aproveita, nem mesmo aquela coisa dura e escura feita de farinha de milho de que alguns conterrâneos tanto se orgulham. Outra coisa que se destaca do Mondego para baixo é o cheiro da vegetação quando o Verão se aproxima. E nesta etapa começámos finalmente a sentir com intensidade esses odores.

Felizmente que por aquelas bandas o IC8 deixou a N2 imaculada e assim pudemos desfrutar dum passeio agradável pela tranquilidade da estrada apenas interrompida pela passagem pontual de mais alguma moto de outros viajantes a efectuar o mesmo percurso que nós. Uma constante ao longo das etapas que durou esta viagem.

Paragem na Sertã para mais um carimbo, reabastecimento e regresso à estrada para uma agradável ascensão pela N2 original visto que a N2 actual entre a Sertã e Abrantes é uma via rápida sem qualquer interesse para ciclistas. Terminada a subida chegávamos aquele que era para mim um dos pontos mais aguardados da viagem, onde iria dar asas à criatividade para desenhar percursos. Estávamos num cruzamento, à direita tínhamos indicação de que seguia por ali a N2, para sul, mas, como foi referido trata-se duma via rápida de pouco interesse. À nossa frente tínhamos o desconhecido, a N244 que tinha ali o seu km 0. Claro que foi por aí que seguimos.

Que bela surpresa se revelou esta estrada. Mais acidentada que a N2 mas com paisagens deslumbrantes numa região onde não abunda a presença humana. Desde logo começámos a elaborar planos de registar o exclusivo dos passaportes para que quem a venha a visitar tenha de nos pagar royalties por cada carimbo. Fomos seguindo, tirando fotos e inalando o cheiro do rosmaninho, mas acabámos por deixar esta estrada e divergir para oeste, a caminho de Vila de Rei, através de estradas ainda mais acidentadas, de piso nem sempre imaculado e atravessando aldeias dispersas despovoadas de gente.

N244

O calor do meio do dia fazia-se sentir quando chegámos a Vila de Rei. Julgo que é da praxe para quem percorre a N2 visitar o Picoto da Melriça, onde se situa o centro geodésico de Portugal. Já lá tinha ido de carro e lembrava-me bem como aqueles últimos metros de subida tinham custado ao pobre motor de 80cv. Seria a minha retribuição ao Tico da chegada ao hotel do dia anterior, pelo que valeu a pena retroceder 2 km pela já várias vezes aqui referida via rápida e fazer o desvio para ir lá acima.

Picoto da Melriça, centro geodésico de Portugal

Tal como outros turistas que por ali pululavam também nós tirámos as nossas fotos para recordação após o que nos lançámos ladeira abaixo, sem que antes tivéssemos ali obtido mais um carimbo. Paragem numa pastelaria da vila para comer qualquer coisa e repor o nível dos bidons.

Conhecia relativamente bem o troço de estrada que se seguia pois tinha-o percorrido, de carro, algumas vezes durante as férias do ano anterior. Embora não esteja sinalizada o seu acesso e a sua existência, para quem vem na N2 actual, a N2 original entre Vila de Rei e o Sardoal é um prazer para o ciclista e não só. Inicialmente parece que alguém a quer manter secreta. Não existem indicações mas se entrarmos nela os primeiros marcos que encontramos até estão pintados de branco, como se sinalizassem uma estrada fantasma. A estrada, estreita e sinuosa, vai-se desenrolando por entre encostas e vales. Paragem obrigatória no miradouro do Penedo Furado, com vista para a praia fluvial, os passadiços e um dos vários braços da Albufeira de Castelo do Bode. Umas centenas de metros à frente o início da subida assinalava também a entrada no distrito de Santarém, mais precisamente no concelho do Sardoal. Os marcos indicavam agora “N358-3, antiga N2”.

A estrada continuou a deslumbrar-nos até ao Sardoal onde parámos para mais um reabastecimento e carimbo num simpático café cuja funcionária nos afiançou ter o edifício mais de 300 anos. Acreditámos pois toda a vila parece estar ali implantada há vários séculos.

Podíamos agora seguir pela N2 oficial até Abrantes mas a memória que tinha do ano anterior, quando lá passara de carro, era de mais uma estrada com características de via rápida fazendo a aproximação à cidade pelo meio de indústrias e trânsito de camiões. Tinha no entanto uma alternativa na manga. Perguntei ao Tico se estava comigo. Claro que se tratava de simples retórica pois já sabia a resposta. Assim divergimos mais uma vez para oeste através duma estrada municipal que nos permitiria apanhar na localidade de Sentieiras a também estrada municipal que liga Carvalhal a Abrantes. O problema foi que essas duas estradas não se encontram à mesma cota e assim, à custa de bom suor, julgamos ter inaugurado o Mur de Sentieiras. Pelo menos daí até Abrantes foi sempre a descer e à entrada da cidade tivemos a agradável (pelo menos para mim) vista da Casa de Benfica de Abrantes.

Não queríamos prolongar ainda mais o tempo de viagem pelo que optámos por não visitar o centro da cidade, que fica numa cota mais alta. Assim dirigimo-nos de imediato à travessia do Tejo tendo o carimbo sido obtido à face da estrada, no simpático Retiro do Camionista.

As grandes rectas a sul do Tejo

Com a passagem para o sul do Tejo mudou também a tipologia da estrada. Começaram a aparecer as primeiras longas rectas, primeiro entre campos de regadio, depois entre plantações de pinheiro manso, sobreiro ou mesmo eucalipto. A excepção foi uma curta mas trabalhosa “mudança de nível” na localidade da Bemposta.

Assim chegámos aos arredores de Ponte de Sor. Um carimbo que coincidiu com uma paragem rápida e ala que se faz tarde. Oiço o Tico atrás de mim a falar com alguém. Volto-me e era um companheiro de pedaladas ali da zona a fazer a sua volta vespertina. Disse que era um treino de descompressão por isso se quiséssemos a sua roda até Montargil éramos bem vindos. Foi o melhor que nos podia ter acontecido. É que de Ponte de Sor a Montargil foram praticamente 24 kms de recta com o vento a açoitar-nos essencialmente de lado, por vezes de frente. A roda foi uma ajuda e a conversa uma distracção, sendo que nos foi informando de algumas temas relacionados com a escola de aviação ou com a exploração turística da albufeira. De notar que usando ele um equipamento da Education First e o Tico atrás dele com o “chouriço” pendurado veio-me à memória aquele popular vídeo do Rigoberto Uran e do agricultor.

O “Rigoberto”

O nosso companheiro, de seu nome André, deixou-nos em Montargil e nós também deixámos a N2 pois tínhamos agora de percorrer apenas mais 10 km até ao nosso destino de pernoita, na aldeia do Couço, onde chegámos pouco depois.

Cumprida a rotina do banho e da lavagem da roupa fomos à procura de um restaurante para jantar. A aldeia é pequena e a escolha não era muita mas, para piorar a situação, por um motivo ou outro todos os restaurantes estavam encerrados. Vimos a coisa mal parada pois estávamos mesmo com fome. Mas foi a melhor coisa que nos podia ter acontecido. Resolvemos entrar no café do Bexiga e perguntar se havia alguma coisa que comer. Só se for bifanas, disse ele de forma desprendida. Pode ser, respondemos. Que rico final de dia ali passámos, no meio dos indígenas que assistiam à miserável exibição do meu Benfica na TV. Não foi apenas uma mas sim duas bifanas para cada um, naquele divinal pão ribatejano, acompanhadas por imperiais, que fino é coisa de galego.

Estávamos reabastecidos. Voltámos ao quarto para descansar. Antes de adormecer entretive-me no telemóvel a pesquisar personagens alentejanas, ou que pelo menos eu associava ao Alentejo, para ver ser iríamos passar nas suas localidades: Vitorino, Catarina Eufémia, Mafalda Veiga, Florbela Espanca… não sendo eu conhecedor de poesia, proporcionou-se a curiosidade de ler um pouco sobre a sua biografia e a sua obra na Wikipedia.

Não tenhas medo, não! Tranquilamente,
Como adormece a noite pelo outono,
Fecha os olhos, simples, docemente,
Como à tarde uma pomba que tem sono…

E pouco depois devo ter adormecido…

4ª etapa, Couço a Ferreira do Alentejo

A manhã acordou mais fresca e nebulada que nos dias anteriores. Até à data não nos podíamos queixar da meteorologia. Temperaturas amenas, perfeitas para pedalar. Umas nuvens ou mesmo um chuvisco não traria mal ao mundo. Chuva a sério já ia complicar as coisas pois não vínhamos preparados para a enfrentar. Mas tínhamos consultado as previsões e a probabilidade de chuva era baixa por isso só esperávamos que a sorte nos continuasse a acompanhar.

Saímos da aldeia do Couço mas em vez de nos dirigirmos de imediato à N2 resolvemos recuar um pouco para não deixar de conhecer a pitoresca vila de Mora e, já agora, obter mais um carimbo. Grupos de motociclistas tomavam o pequeno almoço em diversos estabelecimentos da localidade. Mais adiante haviam de passar por nós nas suas montadas mais ou menos majestosas. Havíamos de trocar algumas palavras com um grupo vindo de Braga, na paragem ritual no Ciborro para comemorar o marco dos 500.

Entrámos definitivamente nas estradas alentejanas, caracterizadas por longas rectas onduladas. Desenganem-se os que pensam que se trata dum paraíso para o ciclista. Na verdade o desnível não é grande e podemos tentar ganhar alguma velocidade na descida para tentar passar a subida seguinte em sprint. Isto podia ser viável meia dúzia de vezes mas ao trigésimo nono topo estaríamos totalmente esgotados. Assim limitamo-nos a um pedalar ponderado e paciente. Pedalamos a descer, para ganhar kms, pedalamos a subir, com contenção para não nos esgotarmos. Sempre a pedalar. A relação espaço-tempo começa a deformar-se e sem referências intermédias entre duas localidades ir de A a B parece demorar uma eternidade. Felizmente que a paisagem, essencialmente a tradicional planície onde estão implantados os tão falados montes alentejanos, tem variantes capazes de nos manterem encantados ao longo da viagem. As máquinas fotográficas não paravam de disparar em busca “daquela” foto.

Durante a paragem em Montemor-o-Novo surgiu o segundo problema técnico da jornada. O primeiro, conforme se devem lembrar, foi com os meus sapatos que depois de colados em Chaves não voltaram a ter problemas. E agora o problema era novamente nos sapatos! O Tico tinha perdido dois parafusos e por isso tinha uma travessa solta. A solução foi retirar um parafuso do outro sapato e prosseguir com apenas dois parafusos em cada travessa. Problema resolvido, aguentou até Faro. De notar que ao longo dos mais de 800km de viagem não tivemos qualquer problema ou avaria com as bicicletas. Nem furos tivemos, talvez por sorte ou talvez porque utilizámos resistentes pneus de 28mm, no meu caso, ou de 32mm tubeless no caso do Tico.

As paragens seguintes foram em Alcáçovas, para apreciar o centro da localidade, e no Torrão, em cuja entrada fizemos uma encenação para a foto numa antiga calçada romana ali existente. Enquanto o Tico obtinha mais um carimbo eu abrigava-me da chuva, que resolveu brindar-nos durante alguns minutos, e entretive-me a falar com o maluco da aldeia, uma celebridade do Preço Certo em Euros que me deu úteis conselhos sobre motos, caso algum dia venha a percorrer a N2 recorrendo a esse meio de locomoção.

E chegámos a Ferreira do Alentejo onde fomos recebidos de martelo na mão pela Ferreirinha, uma moçoila em bronze, de perna grossa e peito avantajado, pelos vistos muito popular por aquelas bandas, pelo que consegui apurar. Cumprida a rotina do banho e da faxina seguiu-se o jantar num restaurante local, que incluiu uma deliciosa sopa do cozido, e entretidos por um empregado falador mas que nunca deverei reconhecer se me voltar a cruzar com ele, culpa destes tempos em que todos têm de usar máscara.

5ª etapa, Ferreira do Alentejo a Faro

Esta jornada começou por ser uma continuação da anterior no que às característica da estrada e da paisagem diz respeito. O primeiro desvio foi para conhecer o centro da animada vila mineira de Aljustrel. À saída ainda houve tempo para umas fotos na antiga linha de comboio, inaugurada em 1929 com o objectivo principal (mas não único) de escoar o minério mas entretanto desactivada.

Seguiu-se Castro Verde, concelho onde se situa a Mina de Neves-Corvo. Curiosamente é em Almodovar que se situa um imponente monumento evocando os mineiros. O corpulento mineiro com uns 10m de altura e braço estendido fez-me lembrar de imediato imagens que vi em tempos, e que me impressionaram, do monumento à Mãe Pátria, em Volgogrado. Uma pesquisa posterior deu-me a conhecer o nome de Aureliano Marques de Aguiar, autor desta e de outras obras existentes no concelho, inclusive um apocalíptico carro de bombeiros em escala real que também havíamos fotografado uns minutos antes.

Mais para a frente o cenário mudou radicalmente. Entrámos no distrito de Faro e a planície alentejana deu lugar ao ondulado da serra do Caldeirão. Para mim uma das zonas mais bonitas dos 800km de percurso. Íamos subindo mas quase não nos apercebíamos, tal a suavidade do piso e a beleza da paisagem circundante. Por vezes também descíamos a grande velocidade por sequências de curvas que mesmo assim nos permitiam largar os travões. As motos e agora também as Vespas continuavam a passar por nós com regularidade.

Uma paragem no Miradouro do Caldeirão permitiu-nos meter conversa com um desses grupos de “vespistas” com quem já nos tínhamos cruzado pela manhã em Aljustrel. Ficámos a saber que vinham de Fafe. Arrancámos antes deles mas passados alguns kms lá voltaram a passar por nós, lançados em direcção a Faro.

A passagem pelo Barranco do Velho trouxe-me recordações das transmissões da Volta ao Algarve. Nunca cheguei a ter a noção de onde se situou o topo da serra pois andámos por lá num sobe-e-desce constante que só se tornou numa descida mais longa já muito perto de São Brás de Alportel, localidade onde parámos para um penúltimo carimbo no café da divertida Cristina que fez questão de serem os nossos passaportes a “tirar os três” (palavras dela) ao carimbo entregue em mão naquele mesmo dia por um funcionário da autarquia, depois dela própria ter reclamado em sede própria do absurdo que era terem desviado o trajecto da N2 para uma espécie de variante que contorna a vila, desviando potenciais turistas do centro da localidade. Claro que nós íamos a seguir o percurso original, mesmo contrariando sentidos proibidos e impedimentos por obras, pelo que parámos mesmo no café da Cristina.

Daqui até Faro a única recordação agradável foi a sensação de estar quase a cumprir o objectivo. Um vento frio e despropositado teimava em nos fustigar, inicialmente de frente e a certa altura de lado, obrigando-nos a segurar o guiador com firmeza para não ziguezaguear na estrada de trânsito mais intenso. A paisagem, subúrbio de cidade grande, também não tinha interesse. Restava-nos fazer a contagem decrescente dos kms.

E lá estava ele, o marco do km 738, numa rotunda no chão da qual tinha sido desenhado o mesmo número. O Tico dirigiu-se para o meio da rotunda, onde uma família assinalava também a conclusão da jornada. Entretanto outros viajantes haviam de chegar. Quanto a mim, deixei-me ficar alguns minutos em cima do passeio, à entrada da rotunda, encostado a um sinal de trânsito enquanto saboreava o momento. Eventualmente lá me juntei ao Tico para a foto da praxe.

Epílogo

Foi uma experiência extremamente agradável. Não gosto de lhe chamar aventura pois considero que uma verdadeira aventura tem de conter mais risco, dificuldade e imprevisibilidade. No nosso caso a única dificuldade foi pedalar aquela quantidade de kms. Mas há até quem o faça numa assentada, por isso… Risco e imprevisibilidade parece-me que estiveram sempre perfeitamente controlados, até a meteorologia foi piedosa conosco.

Pode parecer que o país é pequeno quando até dois tipos sem preparação especial o conseguem atravessar de bicicleta mas, paradoxalmente, quando recordamos a diversidade de paisagens e lugares que percorremos e fotografámos, parece enorme.

Restavam-nos ainda 11km de pedalada até Quelfes onde, tal como em tempos a Florbela, iríamos descansar em casa de gente amiga. No dia seguinte quem passou na estação de comboios de Faro pela hora de almoço talvez tenha reparado em dois tipos com aspecto indigente, devido às vestes com uma semana de uso, e duas trouxas toscas do que pareciam ser componentes de bicicleta, a aguardar o comboio para norte.

A nossa Nacional 2

Equilibrium

Uma das fórmulas  de sucesso que utilizo para provocar a minha filha é exprimir a ideia de que os médicos hoje em dia são, salvo algumas honrosas excepções, uns sonsos. Senhor doutor não ando bem do estômago. Aconselho-o a evitar as francesinhas. Sôtor, e este incómodo na virilha? Muitas horas no selim, devia deixar a bicicleta. Mas posso jogar ténis? É melhor não… esse cotovelo já não vai para novo. O remédio proposto é sempre parar. Complemento a provocação elogiando os médicos de antigamente: esses sim, eram arrojados e proactivos. Faziam sangrias e lobotomias! A eficácia podia não ser a melhor mas pelo menos dava ao paciente aquela ilusão de que algo estava a ser feito para resolver o seu problema.

Quando o planeta é assolado por uma pandemia viral os médicos são chamados para dirigir as operações. Afinal são eles os especialistas. Resultado: instruções para ficarmos em casa, o tão comentado isolamento social. À primeira impressão até nem devia ser algo que me incomodasse muito. O meu filho costuma dizer, por detrás dum sorriso maroto, que ninguém deve estar tão bem preparado como eu para este confinamento. Afinal, diz ele, andei 50 anos a preparar-me para isto. Uma alusão às minhas débeis capacidades de convivência e ao prazer em passar horas isolado, embrenhado nos meus assuntos. Mas uma coisa é um tipo estar sozinho, sem ninguém que o incomode, outra é começar a ter a sensação que se está a tornar uma personagem daquele filme Equilibrium e que em qualquer altura nos pode entrar o Christian Bale pela porta adentro para nos punir por não termos tomado o comprimido da obediência às imposições dum qualquer grande irmão.

Às vezes duvido se me preocupa mais o vírus ou as consequências deste travar a fundo de toda a actividade. Parece que a doença, embora de forma errática, é grave e mata. Mas também este controle a que nos querem sujeitar não é grande vida. Se, como dizem, mais tarde ou mais cedo todos nós vamos ser contaminados então não seria melhor despachar já o assunto?… Não sou assim tão asno, já percebi que a doença  pode necessitar de cuidados complexos que seriam insuficientes se ficássemos todos contaminados ao mesmo tempo. Mas não deixo de ter uma pontinha de inveja daqueles que já se curaram e que esperemos, pois ainda falta confirmar, tenham ficado imunes. Se assim for, já estão despachados.

Mas porque é que estou a escrever isto num espaço dedicado às bicicletas? Começo por dizer que era algo que queria evitar. Estou farto do tema e de ouvir opiniões e o seu contrário. Fujo das conversas e desligo os noticiários. Não queria ser mais um a dar palpites. Mas o tema é tão avassalador que se torna difícil fugir-lhe. E chega também às bicicletas, começando a haver um cisma entre aqueles que defendem o confinamento total e os que mantém a actividade pedalante no exterior.

Admito que sou um dos que tem continuado a sair para pedalar. Espero que esta confissão não seja válida como prova do meu crime. Não quero problemas com o Clérigo Preston. Faço-o porque não compreendo tanta restrição. Em que é que uma volta solitária ou mesmo acompanhado por outra pessoa, mantendo o tal afastamento necessário, pode comprometer esta luta? Tem razão de ser o argumento de que um acidente com necessidade de atendimento hospitalar é uma sobrecarga desnecessária para os serviços de saúde. Mas aí cabe-nos a nós ter cuidados redobrados e limitar manobras mais arriscadas. O risco continua a existir mas, que diabo, existem mil e uma formas de ter um acidente a fazer qualquer coisa em casa.

Também não aceito a alternativa dos rolos. Devo ter uns encostados ali num canto da garagem, portanto não é porque não tenha que não me agrada essa proposta. É porque não é a mesma coisa, não me venham cá tentar convencer do contrário. Aquilo pode satisfazer quem gosta apenas de dar aos pedais mas nunca poderá satisfazer quem gosta de andar de bicicleta.

Portanto, aos beatos do confinamento a 100%, aos senhores das frases feitas de auto ajuda e dos hashtags, peço que… não chateiem! Nós alinhamos de bom grado no fundamental que é o isolamento: vocês na vossa vida e nós na nossa. E se a nossa atitude estiver errada, por oposição à da manada, cá estaremos para arcar com a responsabilidade.

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Equilibrium

Abril

O final deste mês de Abril proporcionou algumas pedaladas de qualidade. Mais de 200 quilómetros a solo, com passagem pelo Marão e pelo Alvão, proporcionaram um bom dia de… introspecção. O teste a uma das “subidas épicas” foi um dos pontos de interesse do dia que permitiu confirmar que passados 15 anos o Homem da Marreta ainda continua à espreita nas encostas de Barreiro. Nem uma avaria na mudança da frente, já no regresso e que impeda o uso do prato grande, conseguiu estragar o dia. Resolvida numa… carpintaria! Quase de seguida achámos, eu e o Tico, que depois de tanto asfalto era altura de confirmar que ainda sabemos andar fora de estrada. Confesso que não era a minha primeira ou segunda escolha mas ainda bem que seguimos a vontade dele indo até Valongo. Seguindo um trajecto já conhecido, conseguimos improvisar bastante sem nos metermos em becos sem saída, o que é raro, completando um percurso de grande qualidade. Uma bela dor de pernas foi o corolário de um dia onde mais uma vez se ouviu a justificação “(…) vamos pelo monte, que pela estrada é muito monótono (…)”.

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N304, Serra do Alvão, 25.4.2018

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Valongo, 28.4.2018

Abril

Igrejas de Terras do Bouro

Finalmente uma trégua meteorológica para desfrutar do plano que aguardava há já algumas semanas na gaveta: fotografar as 19 igrejas paroquiais do arciprestado de Terras de Bouro. Nenhum motivo religioso me move, no entanto parece-me excelente o pretexto de visitar igrejas para desenhar um percurso de bicicleta, ideia que uma vez resolvi copiar do Joel Braga (mérito a quem o merece). Ficamos a conhecer muitos locais e muitas estradas que normalmente ficariam fora das escolhas habituais. Além disso, salvo algumas excepções, as igrejas costumam ser edifícios interessantes para fotografar. A primeira experiência tinha sido em Santo Tirso, de BTT, e a segunda tinha sido em Cabeceiras, de roda fina. Recordava agora ambas como boas experiências que queria tornar a repetir.

Ao estudar os mapas para preparar este projecto, e à medida que ia desenhando o percurso, comecei a verificar que, além da dificuldade derivada da orografia do terreno, também iria haver um interessante desafio psicológico provocado por diversas mudanças de sentido no percurso, com regressos ao mesmo ponto, ou lá perto, quando seria mais fácil continuar em frente. Mas não precisava de enfrentar sozinho essas dificuldades. O Tico ia acompanhar-me e a ele pouco interessam as dificuldades, nem as quer saber de antemão. Pergunta apenas a hora de partir e segue o caminho que lhe indicarem.

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Rio Caldo (São João Baptista)

O local de partida escolhido foram as pontes sobre a albufeira da Caniçada. Pouco mais de um quilómetro tínhamos pedalado e já se parava para a primeira foto na igreja de Rio Caldo. Daí seguimos para a próxima, Valdozende, onde chegámos com relativa facilidade apesar daquele desconforto matinal provocado pelos músculos ainda frios. Característica distintiva dessa igreja é o enorme sino que se encontra no átrio. Piadas brejeiras surgiram devido ao tamanho do seu badalo.

Tivemos logo depois oportunidade de realizar a boa acção do dia. Uma tripulação da Cruz Vermelha tentava, em vão, retirar a sua ambulância da posição em que se encontrava, entalada numa curva de desnível acentuado, sem ângulo para avançar e sem tracção para recuar. Resolvemos ajudar, com instruções para o motorista e com a colocação de pedras para calçar as rodas. Depois de algum esforço lá saiu daquela posição e pode continuar o seu caminho.

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Santa Isabel do Monte (Santa Isabel)

Quanto a nós, aguardava-nos a primeira dificuldade do dia, a subida a Sta Isabel do Monte. Uns dias antes, ao estudar o percurso, ocorrera-me classificar aquela que seria a dificuldade esperada para chegar a cada uma das igrejas e esta estava classificada como vermelha. Já conhecia a subida mas das outras vezes sempre com mais quilómetros acumulados nas pernas. Talvez por isso desta vez me tenha parecido bastante mais fácil, ainda que a inclinação do troço final nos faça sempre lutar com os pedais.

Mais uma igreja. Enquanto eu me entretia a procurar o melhor enquadramento para as fotos o Tico cumpria aquilo que se confirmou como um ritual para o dia: contornar vagarosamente o edifício a pedalar. Quando nos preparávamos para seguir caminho uma manada de vacas apareceu, numa fila quase perfeita, talvez em direcção ao estábulo. Encostámo-nos às bicicletas e ficámos ali uns minutos a apreciar a sua pachorrice e a divagar sobre o valor da vida sem preocupações.

Depois duma inclinada descida, que me fez recordar que necessito verificar os calços dos travões, chegámos à quarta igreja do dia, Chorense. Aquela hora as nuvens deixavam passar o sol que iluminava toda a encosta e era reflectido nas paredes brancas do edifício. Boas condições para fotografar, saiba o fotógrafo aproveitá-las.

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Chorense (Santa Marinha)

Encontrava-me no átrio, uns metros acima do nível da estrada onde alguns ciclistas seguiam arfando encosta acima. Pareceu-me reconhecer um deles e por isso fiz um teste: “Brasa!”, gritei. Ele olhou, disse qualquer coisa e seguiu. Esbocei um sorriso. Na verdade não tínhamos nada para falar e aquele era o Brasa que sempre conheci, obcecado em pregar o vizinho da rua em qualquer segmento do Strava. Claro que nunca pararia a meio duma subida

As igrejas que se seguiram, Balança, Ribeira e Souto, não tiveram grande história. Percurso essencialmente descendente por estradas tranquilas. O arvoredo deve torná-las agradáveis em dias de verão mas naquela altura o que desejávamos era alguma subida da temperatura. Foi também no bar da paróquia da Ribeira de São Mateus que fizemos a primeira pausa para reabastecer.

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Ribeira (São Mateus)

A descida terminou finalmente na N205, no vale do Rio Homem, que atravessámos pela primeira vez no dia. Por mais três vezes o iríamos fazer. Havia que visitar as igrejas de Valbom e Valdreu antes de visitar finalmente a de Moimenta-Covas, que é esse o nome da igreja paroquial que fica no centro da vila de Terras do Bouro. Também é essa a mais moderna, com uma arquitectura que, não sendo entendido, me pareceu das últimas décadas do séc. XX e, para mim, pouco interessante.

Seguiu-se o início do teste à determinação em cumprir o plano. Para visitar as igrejas seguintes, Vilar e Chamoim, era necessário subir alguns quilómetros da N307 para depois voltar para trás e seguir outro sentido. Optámos por visitar primeiro Chamoim, alterando a ordem inicialmente prevista. Na brincadeira disse ao Tico que aquela ia fotografar de longe, pois construiram-na no final duma inclinada descida de empedrado que nos deu trabalho durante alguns minutos para escalar de volta à estrada principal.

Voltámos para trás, descendo de novo em direcção a Terras de Bouro. Rápida paragem em Vilar para registar mais um objectivo e, um pouco mais a baixo, viragem à direita para mais uma travessia do Homem. Demorámo-nos um pouco a apreciar o rio e as pontes, tirando mais umas fotos. Ao lado um pescador preparava o equipamento. Aquele hobby a que eu e o Tico tanto ansiamos dedicar-nos… quando estamos empenados.

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Vilar (Santa Marinha)

Começava agora o terreno verdadeiramente acidentado. Primeiro a subida a Gondoriz, com inclinações razoáveis, sabendo que de seguida se volta para trás, descendo parte do que se subiu. Depois uma subida mais longa até Brufe, com paragem em Cibões. No final pareceu-me que o Tico acelerou um pouco o ritmo e comecei a não seguir muito confortável, com as costas a doer e a respiração mais ofegante que o desejável. É talvez a única queixa que tenho dele, o controlo do ritmo: ou se deixa “adormecer” e fica para trás parecendo esquecido de que temos um trajecto para cumprir, o que consegue ser por vezes bastante irritante, ou depois lembra-se e vai por ali fora, deixando um tipo sem ar.

Foi com agrado que vi Brufe aparecer a seguir a uma curva pois durante os próximos quilómetros poderíamos recuperar forças. A descida para a barragem de Vilarinho das Furnas proporciona vistas impressionantes mas o frio que se fazia sentir abafou um pouco essa magia.

Parámos no Campo do Gerês para o segundo reabastecimento do dia antes de visitarmos a respectiva igreja. O Tico tinha-se esquecido do dinheiro dele, o meu também não era muito, e por isso tivemos de contabilizar bem os trocos disponíveis para não ter de ficar a lavar pratos.

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Carvalheira (São Paio)

Seguiu-se a Carvalheira, talvez a visita que me despertava mais curiosidade pois nunca tinha percorrido aquela crista. A ida presta-se a algumas vistas fantásticas. Já no após seguiu-se uma descida, que no sentido oposto deve dar um belo desafio, e que só terminou na travessia da Ribeira de Rodas, junto às Águas do Fastio.

Chegámos de novo à N307. A curta distância avistávamos a igreja de Chamoim onde tínhamos estado há umas horas atrás. Mas o próximo objectivo era subir até Covide. Já dentro da aldeia acabámos por ser surpreendidos por uma espécie de “Koppenberg” que nos largou ofegantes junto ao local para mais um registo, o penúltimo.

Faltava apenas Vilar da Veiga, a ligação mais longa, 19 quilómetros. Situada numa cota baixa, já na descida para o ponto de partida. O trajecto obrigava no entanto a subir, fazendo a travessia pelo cabeço da Calcedónia. É no entanto um caminho já bem nosso conhecido pelo que se percorreu com relativa facilidade.

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Vilar da Veiga (Sto António)

Estávamos finalmente de regresso ao ponto inicial. O percurso não foi muito longo, para bicicleta de estrada, mas o acumulado de subida foi apreciável. Cheguei com dores nas costas, no rabo e no corpo em geral mas com o objectivo cumprido e já com ideias para outros objectivos.

Fotos das 19 igrejas de Terras do Bouro

Igrejas de Terras do Bouro