Começando pelo fim, vir até à Cabreira para fazer apenas pouco mais de 40km. Perguntei ao meu camarada Tico se lhe tinha sabido a pouco. Como habitualmente, o seu bom feitio assegurou-me que estava tudo bem. Conheço-o o suficiente para saber que estava a ser sincero. A verdade é que ninguém me poderia acusar de ter vindo ao engano pois tinha divulgado atempadamente, a quem interessasse, quais as características do percurso escolhido para este dia. Mesmo assim lá tinham aparecido algumas das habituais bocas de desconfiança “(…)volta sem dificuldade de maior!!! É a Cabreira!(…)” que me têm levado a pensar cada vez mais em voltas para mim e menos para fazer convites. Cada qual sabe das suas capacidades. Apenas faço o convite e não sou mentiroso. Bastava terem dito que não, dispenso outras avaliações.
Mal chegámos a Torrinheiras encontrámos o Picão que de imediato nos reconheceu e disponibilizou o estacionamento do seu restaurante para aí deixarmos o carro. Por aquela hora da manhã sentia-se a brisa gelada típica daquelas cotas. Mas não tardou a que entrássemos nos trilhos e começássemos a subir. Passado algum tempo o corta-vento entrava na mochila e de lá não sairia mais até ao fim da jornada.
Não devo ter feito bem o trabalho de casa… Contava percorrer um trilho, a caminho de Busteliberne, que parecia desafiante nas fotos aéreas do Google mas que afinal se revelou um estradão. Pior, já tinha lá passado nos últimos dois anos e esquecera-me disso.
A previsão, ou melhor, a fé na meteorologia é que tinha resultado em pleno. Desejava um dia sem chuva mas com os trilhos molhados, pois acho que ficam com outra beleza. E foi isso que tivemos! A chuva forte do dia anterior sumiu durante a noite.
Desilusão foi o panorama depois da casa florestal da Veiga: grande parte daquelas encostas tinham sido consumidas pelos fogos florestais. Alguns kms à frente o cenário melhorou e felizmente até ao fim, que me lembre, não encontrámos mais sinais de incêndios recentes.
Entretanto estávamos na encosta sobranceira à aldeia de Agra e descemos um bonito trilho repleto de musgos e coníferas que em tempos tínhamos percorrido em sentido contrário. Aqui o trabalho de casa tinha sido bem feito e o GPS ia-nos sucessivamente desviando dos caminhos óbvios. Vegetação luxuriante, cores de outono e até uma subida bem técnica para desafiar o físico levaram-nos ao sopé do Talefe.
O Talefe desta vez não estava na lista de interesses. Em vez disso tínhamos à nossa espera a ponte romana da Quebrada sobre o Rio da Lage, perto de Campos. Tratava-se duma sugestão do Major, que à última hora não nos pode acompanhar. Segundo ele, tinha-a visitado num passeio pedestre com o cão. O caminho para lá chegar pareceu-nos apropriado para esse tipo de actividade, desde que com calçado adequado. Sempre que o instinto de preservação nos convidou a apear os sapatos de BTT mostraram grande dificuldade de aderência no granito molhado.
Demorámo-nos junto à ponte que atravessa um rio que, aparentemente, não está a sofrer muito com a seca. O local é realmente digno de ser visitado e as fotos multiplicaram-se. O Tico apreciava o sossego do local e, talvez resquícios duma semana de trabalho complicada, manifestava interesse em abraçar a vida do campo. Mas tínhamos de continuar.
Em Linharelhos mais um desvio para investigar uma curiosa construção que se tinha revelado também nas fotografias aéreas. Havia o caminho conservador para lá chegar. E havia uma alternativa que se havia revelado também nessas fotos mas que não dava perceber se era realmente um caminho ou um longo muro de pedra. No local verificámos que era mesmo um trilho, técnico q.b.
A construção era uma pequena barragem com um escoador que lançava água para um túnel que desaparecia nas entranhas da terra. Ficámos curiosos quanto ao destino da água. Atendendo à direcção do túnel e a um painel que indicava ser aquela barragem um complemento da da Venda Nova, presumimos que fosse esse o seu destino.
Em Caniçó entusiasmei-me com um engraçado single-track pelas traseiras dos quintais e perdi o meu companheiro. Enquanto esperava fui abordado por três simpáticos irmãos, uma menina e dois meninos. Com as caras encardidas e grandes moncos no nariz, mostravam grande alegria por ver ali aquele forasteiro de bicicleta. Fui metendo conversa e eles lá foram desbobinando pormenores da vida familiar. Com 6, 11 e 12 anos eram os mais novos de quatro irmãos. Para grande alegria de um deles deixei-o sentar em cima da bicicleta e empurrei-o durante duas voltitas. O Tico entretanto apareceu. Despedimo-nos deles com um “até à próxima”.
A ligação de Caniçó a Paredes seria uma demonstração de fé da minha parte. Todo o percurso tinha sido desenhado com recurso aos mapas e ao Google Earth e estre troço era o que me tinha suscitado mais dúvidas. Mesmo assim resolvi mantê-lo no projecto. O início até foi prometedor. Um ribeiro, uma lage de granito para o atravessar… mas foram só meia dúzia de metros. Depois… bom, acho que vou entregar o risco ao outro, pode ser que queira lá ir passear com o cão.
Depois de Paredes a oportunidade de, finalmente, percorrer um pouco dos trilhos na floresta a leste desta localidade. Há anos que pedalo por aquela região e aquele pedaço nunca tinha calhado em nenhum percurso. Valeu a pena e há até motivos para lá voltar a passar.
Faltavam menos de 10km de rompe pernas até Torrinheiras. O percurso, apesar de curto, tinha sido bem condimentado. Ao longo deste relato esqueci de referir que lá pelo meio até tive oportunidade de experimentar a textura fofa do granito.
Chegámos cedo e desta vez ficámos por ali na conversa enquanto degustávamos um dos pratos do dia do Picão. Sinais dos tempos.