Cumprido, não comprido

Começando pelo fim, vir até à Cabreira para fazer apenas pouco mais de 40km. Perguntei ao meu camarada Tico se lhe tinha sabido a pouco. Como habitualmente, o seu bom feitio assegurou-me que estava tudo bem. Conheço-o o suficiente para saber que estava a ser sincero. A verdade é que ninguém me poderia acusar de ter vindo ao engano pois tinha divulgado atempadamente, a quem interessasse, quais as características do percurso escolhido para este dia. Mesmo assim lá tinham aparecido algumas das habituais bocas de desconfiança “(…)volta sem dificuldade de maior!!! É a Cabreira!(…)” que me têm levado a pensar cada vez mais em voltas para mim e menos para fazer convites. Cada qual sabe das suas capacidades. Apenas faço o convite e não sou mentiroso. Bastava terem dito que não, dispenso outras avaliações.

IMG_0395

Mal chegámos a Torrinheiras encontrámos o Picão que de imediato nos reconheceu e disponibilizou o estacionamento do seu restaurante para aí deixarmos o carro. Por aquela hora da manhã sentia-se a brisa gelada típica daquelas cotas. Mas não tardou a que entrássemos nos trilhos e começássemos a subir. Passado algum tempo o corta-vento entrava na mochila e de lá não sairia mais até ao fim da jornada.

Não devo ter feito bem o trabalho de casa… Contava percorrer um trilho, a caminho de Busteliberne, que parecia desafiante nas fotos aéreas do Google mas que afinal se revelou um estradão. Pior, já tinha lá passado nos últimos dois anos e esquecera-me disso.

A previsão, ou melhor, a fé na meteorologia é que tinha resultado em pleno.  Desejava um dia sem chuva mas com os trilhos molhados, pois acho que ficam com outra beleza. E foi isso que tivemos! A chuva forte do dia anterior sumiu durante a noite.

IMG_0404

Desilusão foi o panorama depois da casa florestal da Veiga: grande parte daquelas encostas tinham sido consumidas pelos fogos florestais. Alguns kms à frente o cenário melhorou e felizmente até ao fim, que me lembre, não encontrámos mais sinais de incêndios recentes.

Entretanto estávamos na encosta sobranceira à aldeia de Agra e descemos um bonito trilho repleto de musgos e coníferas que em tempos tínhamos percorrido em sentido contrário. Aqui o trabalho de casa tinha sido bem feito e o GPS ia-nos sucessivamente desviando dos caminhos óbvios. Vegetação luxuriante, cores de outono e até uma subida bem técnica para desafiar o físico levaram-nos ao sopé do Talefe.

DCIM138GOPRO

O Talefe desta vez não estava na lista de interesses. Em vez disso tínhamos à nossa espera a ponte romana da Quebrada sobre o Rio da Lage, perto de Campos. Tratava-se duma sugestão do Major, que à última hora não nos pode acompanhar. Segundo ele, tinha-a visitado num passeio pedestre com o cão. O caminho para lá chegar pareceu-nos apropriado para esse tipo de actividade, desde que com calçado adequado. Sempre que o instinto de preservação nos convidou a apear os sapatos de BTT mostraram grande dificuldade de aderência no granito molhado.

IMG_0417

Demorámo-nos junto à ponte que atravessa um rio que, aparentemente, não está a sofrer muito com a seca. O local é realmente digno de ser visitado e as fotos multiplicaram-se. O Tico apreciava o sossego do local e, talvez resquícios duma semana de trabalho complicada, manifestava interesse em abraçar a vida do campo. Mas tínhamos de continuar.

IMG_0423

Em Linharelhos mais um desvio para investigar uma curiosa construção que se tinha revelado também nas fotografias aéreas. Havia o caminho conservador para lá chegar. E havia uma alternativa que se havia revelado também nessas fotos mas que não dava perceber se era realmente um caminho ou um longo muro de pedra. No local verificámos que era mesmo um trilho, técnico q.b.

IMG_0427

A construção era uma pequena barragem com um escoador que lançava água para um túnel que desaparecia nas entranhas da terra. Ficámos curiosos quanto ao destino da água. Atendendo à direcção do túnel e a um painel que indicava ser aquela barragem um complemento da da Venda Nova, presumimos que fosse esse o seu destino.

IMG_0429

Em Caniçó entusiasmei-me com um engraçado single-track pelas traseiras dos quintais e perdi o meu companheiro. Enquanto esperava fui abordado por três simpáticos irmãos, uma menina e dois meninos. Com as caras encardidas e grandes moncos no nariz, mostravam grande alegria por ver ali aquele forasteiro de bicicleta. Fui metendo conversa e eles lá foram desbobinando pormenores da vida familiar. Com 6, 11 e 12 anos eram os mais novos de quatro irmãos. Para grande alegria de um deles deixei-o sentar em cima da bicicleta e empurrei-o durante duas voltitas. O Tico entretanto apareceu. Despedimo-nos deles com um “até à próxima”.

IMG_0430-PANO

A ligação de Caniçó a Paredes seria uma demonstração de fé da minha parte. Todo o percurso tinha sido desenhado com recurso aos mapas e ao Google Earth e estre troço era o que me tinha suscitado mais dúvidas. Mesmo assim resolvi mantê-lo no projecto. O início até foi prometedor. Um ribeiro, uma lage de granito para o atravessar… mas foram só meia dúzia de metros. Depois… bom, acho que vou entregar o risco ao outro, pode ser que queira lá ir passear com o cão.

IMG_0434

Depois de Paredes a oportunidade de, finalmente, percorrer um pouco dos trilhos na floresta a leste desta localidade. Há anos que pedalo por aquela região e aquele pedaço nunca tinha calhado em nenhum percurso. Valeu a pena e há até motivos para lá voltar a passar.

Faltavam menos de 10km de rompe pernas até Torrinheiras. O percurso, apesar de curto, tinha sido bem condimentado. Ao longo deste relato esqueci de referir que lá pelo meio até tive oportunidade de experimentar a textura fofa do granito.

Chegámos cedo e desta vez ficámos por ali na conversa enquanto degustávamos um dos pratos do dia do Picão. Sinais dos tempos.

Todas as fotos disponíveis aqui.

Cumprido, não comprido

O Vez outra vez

Vária vezes tenho dito que é daquela serra que tenho as melhores recordações o que a torna, eventualmente, a minha favorita. Daí que um convite para lá voltar a pedalar seja irrecusável, ainda que por duas vezes a tivesse visitado nos últimos meses. O percurso, de BTT, nem seria muito diferente daquele do início de Julho mas, se o simples apelo do local não bastasse, ainda havia a expectativa de conhecer alguns caminhos novos.

Revelou-se um dia violento para o esqueleto. A entrada a frio na parte mais acidentada da ecovia, o Trilho dos Mortos e as tenebrosas escaladas de Currais e Sta Marinha marcaram o resto da jornada.

IMG_0390.JPG

Nem todos partilharão esta opinião mas a minha parte favorita do percurso, apesar do cansaço já acumulado, foi a Branda da Aveleira. Muitas vezes tinha ali passado nas redondezas mais foi a primeira vez que entrei na aldeia que fiquei com vontade de conhecer melhor.

Fiquei muito desiludido com o que aconteceu aos trilhos do planalto e às descidas para o Mezio, Lordelo e outras. Paço a explicar: todos aqueles trilhos técnicos que durante tantos anos fizeram as delícias de quem gostava de os percorrer de BTT foram sujeitos às máquinas. Agora são estradões onde até dá para passear de Kangoo.

IMG_0391.JPG

A companhia foi simpática, tudo bom moços. Mas não posso deixar de achar piada ao contraste entre o ruído que alguns deles fazem e as fotos que depois tiram, apresentando o ar contemplativo de quem absorve o espírito da montanha.

O Vez outra vez

A longa marcha da cama até à garagem

Quando era pequeno julgava que era característica dos adultos conseguirem levantar-se cedo. Até há alguns anos atrás estava convencido que o avançar da idade me traria esse super-poder. A minha esperança tem-se gorado. Levantar pela manhã é sempre um sofrimento atroz. Ter-me-ei portado mal numa outra vida e agora estarei no inferno condenado para todo o sempre a esta tortura diária que é sair da cama? O problema é mesmo deitar-me tarde sistematicamente. Talvez se o dia tivesse mais horas o problema não se colocasse: poderia passar muitas horas acordado, dormir outras 10 e ainda ter algum tempo livre para calmamente despertar o corpo pela manhã. Encélado, uma das luas de Saturno, devia ser um bom sítio para viver…

Talvez tenham sido aqueles os pensamentos que me ocorreram no Sábado pela manhã. O entusiasmo do dia anterior tinha-se diluído na preguiça mas lá prevaleceu o espírito de missão e quem cruzou na estrada talvez se tenha apercebido do ciclista encolhido pelo frio gélido de Novembro. O vestuário era escasso, quase estival, nem luvas havia. O objectivo era não ser abafado com o calor durante o avançar do dia mas aquele início de manhã fazia ponderar o acerto da decisão.

IMG_0337[1]

O percurso inicial foi o do costume: Taipas, Póvoa de Lanhoso, Gerês… Depois a sossegada subida para a Portela de Leonte. Como esperado, a natureza brindava os olhos com uma orgia de cores e luz. Infelizmente a gama dinâmica da pequena máquina fotográfica e a habilidade do fotógrafo não eram suficientes para capturar uma fracção dessa beleza.

IMG_0344[2]

Passada a Portela do Homem o sossego continuava. Pretendia-se regressar a Portugal pela fronteira do Lindoso mas desta vez o caminho escolhido não seriam as estradas principais que convergem em Lobios. Uma pesquisa nos mapas mostrara uma alternativa mais pitoresca. Tão pitoresca que por vezes era necessário olhar melhor para distinguir a estrada do acesso a um qualquer quintal. Numa viela com o chão pejado de ouriços da castanha uma tabuleta num casebre anunciava a “Adega do Bogas”. Cá fora uma pipa vazia. A construção era velha mas a porta era sólida. A fechadura parecia nova o que me levou a conjecturar sobre que tesouros guardaria.

Reconheci uma estrada. Há muitos anos havia passado ali com o Major numa qualquer incursão de BTT. Já não me lembro se éramos só os dois ou se ia mais alguém mas recordo uma sensação de grande empeno… A beleza da paisagem devia-se à calma presente naquele sopé da serra Amarela. Árvores por ali havia poucas, tirando alguns pinhais logo no início que tinham sido castigados pelo fogo. Nas aldeias não se via vivalma, apesar de não parecerem abandonadas, longe disso, o que me deixou curioso quanto aos motivos.

De volta à estrada nacional os kms passaram num ápice. Cruzada novamente a fronteira, uma pausa em Paradamonte para reabastecer para o regresso. Não queria ir por Germil mas também não me apetecia fazer a monótona subida de Ponte da Barca para a Portela de Vade. A opção acabou por recair em Barral e Azias até Aboim da Nóbrega. Daí descer então para a Portela de Vade e rolar até casa.

Pedalando sozinho tinha conseguido moderar o ritmo ao longo do dia o que fez com que chegasse a casa apenas saturado das horas em cima do selim mas menos cansado do que já tem acontecido em saídas muito mais curtas.

 

A longa marcha da cama até à garagem