Sempre a mesma coisa, ainda mal saíra de casa e já punha em causa o que estaria a fazer ali. O frio da manhã não era confortável e as pernas não se queriam mexer. Arrancara já depois da hora ideal. Não que tivesse saído da cama demasiado tarde, o problema era o tempo que os “sistemas” demoravam a iniciar. Tudo parecia turvo, difuso e feito de forma atabalhoada. Acabara por sair para a rua com um pequeno-almoço fugaz. Já depois de fechar a porta e sem forma de entrar em casa sem acordar alguém, pois a chave ficara lá dentro, é que se apercebeu que não levava nada para repor energias ao longo da manhã. E que se calhar teria sido melhor ingerir alguma cafeína para despertar. Que se lixe, levava uns trocos no bolso, logo se veria.
Mas era um optimista. Já andava naquilo há tempo suficiente para saber que as primeiras sensações normalmente não são as que prevalecem. Às vezes arrancava cheio de ganas e regressava de rastos. Outras vezes era o contrário, podia ser aquele fosse um desses dias. Por isso tratou de controlar o ritmo e aguardar pacientemente que as boas sensações despontassem.
Agora já pedalava por encostas mais soalheiras. Aqui e ali cruzava-se com um ou outro ciclista que lhe parecia sempre demasiado enfarpelado para a temperatura que se fazia sentir. Um carro fez-lhe uma tangente desnecessária que quase o atirou para a valeta. Logo a ele, que se gabava de até nem ter grande razão de queixa dos enlatados. Perseguiu-o, enquanto pode, estrada abaixo, brandindo o punho e soltando insultos, mais chateado por ter sido perturbado na sua meditação que propriamente pelo risco de ser projectado de cima da montada.
Um café na berma da estrada resolveu-lhe o problema do reforço. Sentou-se na esplanada com uma bica e um bolo à frente. Como dizia a canção da ex-namorada do ex-campeão, “soak up the sun”. Demorou-se por ali a ler uma entrevista que lhe chamou a atenção num qualquer jornal.
Gostava daqueles períodos de introspecção que a bicicleta lhe proporcionava. Ia olhando a paisagem à volta, sonhando com um dia em que iria viver para o interior, para a serra, e poder passar dias sem avistar vivalma ou ter de falar com alguém que não, eventualmente, a mulher, se porventura o acompanhasse. Por agora era em cima da bicicleta que conseguia estar mais próximo dessa realização. A leitura recente fazia-o pensar em George Hayduke. Gostaria ele de andar de bicicleta? E deixaria latas de cerveja vazias pela berma? Devia ser uma boa companhia. Pelo menos devia ser de poucas palavras e não haveria o risco de ir por aí aos berros e a dizer bacoradas.
Tal como tinha planeado no GPS, deixou-se perder nas estradas menos evidentes daqueles montes. Tinha planeado tirar algumas fotos do percurso mas não se sentia confiante nas suas capacidades para transpor para o sensor a beleza do que os seus olhos abrangiam. Uma tabuleta desviou a sua atenção do percurso planeado e deu consigo sobranceiro a um bucólico ribeiro. O alcatrão acabava ali e um caminho descia para o vale, afastando-se ao longo deste. Resolveu arriscar meter os pneus finos à terra e deu por si a atravessar o curso de água numa pequena ponte de pedra. Teria de ser ali que iria fazer o registo que daqui por uns anos lhe reavivaria as boas memórias daquele dia.
Apesar da inclinação e da ausência de pavimento não teve grande dificuldade em atingir a aldeia mais próxima onde voltou a encontrar pavimento. Reconheceu o sítio. Já ali tinha passado há muitos anos, quase de certeza na mesma altura do ano pois também, tal como agora, se recordava do agradável cheiro do fumo das queimadas para limpeza da mata.
Resolveu encetar o regresso que o levou por estradas em tempos bastante frequentadas por mulheres que não estavam ali para passear. Restavam duas. Nem sequer tinha restado aquela que durante anos cumprimentava os ciclistas em esforço e até emprestava a raça a um segmento do Strava. Sinais dos tempos, talvez, duma época em que tudo se quer politicamente correcto. Voltou a pensar em George Hayduke, cuspiu para o lado e carregou nos pedais de regresso a casa.