Abril

O final deste mês de Abril proporcionou algumas pedaladas de qualidade. Mais de 200 quilómetros a solo, com passagem pelo Marão e pelo Alvão, proporcionaram um bom dia de… introspecção. O teste a uma das “subidas épicas” foi um dos pontos de interesse do dia que permitiu confirmar que passados 15 anos o Homem da Marreta ainda continua à espreita nas encostas de Barreiro. Nem uma avaria na mudança da frente, já no regresso e que impeda o uso do prato grande, conseguiu estragar o dia. Resolvida numa… carpintaria! Quase de seguida achámos, eu e o Tico, que depois de tanto asfalto era altura de confirmar que ainda sabemos andar fora de estrada. Confesso que não era a minha primeira ou segunda escolha mas ainda bem que seguimos a vontade dele indo até Valongo. Seguindo um trajecto já conhecido, conseguimos improvisar bastante sem nos metermos em becos sem saída, o que é raro, completando um percurso de grande qualidade. Uma bela dor de pernas foi o corolário de um dia onde mais uma vez se ouviu a justificação “(…) vamos pelo monte, que pela estrada é muito monótono (…)”.

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N304, Serra do Alvão, 25.4.2018
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Valongo, 28.4.2018
Abril

Um café e um jornal

Sempre a mesma coisa, ainda mal saíra de casa e já punha em causa o que estaria a fazer ali. O frio da manhã não era confortável e as pernas não se queriam mexer. Arrancara já depois da hora ideal. Não que tivesse saído da cama demasiado tarde, o problema era o tempo que os “sistemas” demoravam a iniciar. Tudo parecia turvo, difuso e feito de forma atabalhoada. Acabara por sair para a rua com um pequeno-almoço fugaz. Já depois de fechar a porta e sem forma de entrar em casa sem acordar alguém, pois a chave ficara lá dentro, é que se apercebeu que não levava nada para repor energias ao longo da manhã. E que se calhar teria sido melhor ingerir alguma cafeína para despertar. Que se lixe, levava uns trocos no bolso, logo se veria.

Mas era um optimista. Já andava naquilo há tempo suficiente para saber que as primeiras sensações normalmente não são as que prevalecem. Às vezes arrancava cheio de ganas e regressava de rastos. Outras vezes era o contrário, podia ser aquele fosse um desses dias. Por isso tratou de controlar o ritmo e aguardar pacientemente que as boas sensações despontassem.

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Rio Bugio, Burgueiros, Fafe
Desta vez lançara alguns convites mas, de certa forma, já se arrependera. Negados ou simplesmente ignorados. Mas ainda bem que o vício era a bicicleta, imagine-se se fosse, por exemplo, o ténis, a desilusão que ia ser cada vez que não arranjasse parceiro. A bicicleta tinha esta característica maravilhosa de se puder desfrutar dela de forma egoísta, sem depender de ninguém.

Agora já pedalava por encostas mais soalheiras. Aqui e ali cruzava-se com um ou outro ciclista que lhe parecia sempre demasiado enfarpelado para a temperatura que se fazia sentir. Um carro fez-lhe uma tangente desnecessária que quase o atirou para a valeta. Logo a ele, que se gabava de até nem ter grande razão de queixa dos enlatados. Perseguiu-o, enquanto pode, estrada abaixo, brandindo o punho e soltando insultos, mais chateado por ter sido perturbado na sua meditação que propriamente pelo risco de ser projectado de cima da montada.

Um café na berma da estrada resolveu-lhe o problema do reforço. Sentou-se na esplanada com uma bica e um bolo à frente. Como dizia a canção da ex-namorada do ex-campeão, “soak up the sun”. Demorou-se por ali a ler uma entrevista que lhe chamou a atenção num qualquer jornal.

Gostava daqueles períodos de introspecção que a bicicleta lhe proporcionava. Ia olhando a paisagem à volta, sonhando com um dia em que iria viver para o interior, para a serra, e poder passar dias sem avistar vivalma ou ter de falar com alguém que não, eventualmente, a mulher, se porventura o acompanhasse. Por agora era em cima da bicicleta que conseguia estar mais próximo dessa realização. A leitura recente fazia-o pensar em George Hayduke. Gostaria ele de andar de bicicleta? E deixaria latas de cerveja vazias pela berma? Devia ser uma boa companhia. Pelo menos devia ser de poucas palavras e não haveria o risco de ir por aí aos berros e a dizer bacoradas.

Tal como tinha planeado no GPS, deixou-se perder nas estradas menos evidentes daqueles montes. Tinha planeado tirar algumas fotos do percurso mas não se sentia confiante nas suas capacidades para transpor para o sensor a beleza do que os seus olhos abrangiam. Uma tabuleta desviou a sua atenção do percurso planeado e deu consigo sobranceiro a um bucólico ribeiro. O alcatrão acabava ali e um caminho descia para o vale, afastando-se ao longo deste. Resolveu arriscar meter os pneus finos à terra e deu por si a atravessar o curso de água numa pequena ponte de pedra. Teria de ser ali que iria fazer o registo que daqui por uns anos lhe reavivaria as boas memórias daquele dia.

Apesar da inclinação e da ausência de pavimento não teve grande dificuldade em atingir a aldeia mais próxima onde voltou a encontrar pavimento. Reconheceu o sítio. Já ali tinha passado há muitos anos, quase de certeza na mesma altura do ano pois também, tal como agora, se recordava do agradável cheiro do fumo das queimadas para limpeza da mata.

Resolveu encetar o regresso que o levou por estradas em tempos bastante frequentadas por mulheres que não estavam ali para passear. Restavam duas. Nem sequer tinha restado aquela que durante anos cumprimentava os ciclistas em esforço e até emprestava a raça a um segmento do Strava. Sinais dos tempos, talvez, duma época em que tudo se quer politicamente correcto. Voltou a pensar em George Hayduke, cuspiu para o lado e carregou nos pedais de regresso a casa.

 

Um café e um jornal

Sem Gonçalo

Tinha na gaveta um percurso que tinha sobrado do #Festive500. Na altura não houve oportunidade para o realizar mas contava fazê-lo logo que possível. O leitmotiv era percorrer mais uma estrada escondida na montanha que, pelas informações recolhidas, parecia ser de grande beleza.

Enviei uma mensagem a desafiar o companheiro mais habitual. Ele retorquiu com um convite para mais uma ida ao S. Gonçalo. Tive a intuição que era para uma espécie de rally das tascas, algo a que sou bastante avesso. Amigo não empata amigo, cada qual iria ao seu destino.

Será pouco original nesta altura referir o frio que se fazia sentir quando saí de casa. Mas parece que com o passar dos anos o vou tolerando melhor. Mesmo a chuva, não fosse o desgaste que provoca no material, já não me chateia tanto como noutros tempos. O mesmo não se pode dizer de alguns outros adeptos do pedal com quem me ia cruzando, cujo equipamento parecia mais apropriado para uma expedição polar que para uma volta de bicicleta.

A estrada que procurava ficava para as bandas da Gandarela pelo que o percurso escolhido foi o tradicional Guimarães-Fafe-Lameira. Estava a planear utilizar a ciclovia mas obras de recuperação do piso fizeram-me desviar para a estrada nacional. A meio da subida da Lameira uma persistente chuva molha-tolos fez a sua aparição. Comecei a pensar que se lá em cima a temperatura baixasse bastante as condições iriam ficar desafiantes.

 

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Felizmente que as dificuldades nunca foram além do razoável e passados alguns minutos já me encontrava a descer para a Gandarela onde iria encetar o regresso, encosta acima, a caminho do Viso.

Cedo fiquei encantado quando entrei na estrada estreita que me tinha proposto explorar. Subia encosta acima, numa espécie de anfiteatro para os trabalhos nos campos e na vinhas. A escalada era efectuada por degraus. Pequenas rampas bastante inclinadas mas a que logo se seguiam zonas planas onde as pernas descansavam.  Se fosse sempre assim não ia ser difícil.

Mas donde raio saiu isto??? Não me apercebi destas curvas de nível nos mapas! O alcatrão desaparecera e uma rampa de inclinação absurda serpenteava pelo meio do casario. Meti a mudança mais leve e tentei pedalar em pé. De imediato a roda traseira começou a patinar na pedra húmida. Tentei seguir sentado mas a certa altura achei que não seria vergonha nenhuma se caminhasse um pouco. Os sapatos de estrada não são lá muito práticos para este tipo de deslocação, tentei facilitar pisando a relva da berma. Felizmente que o asfalto voltou a aparecer 20m à frente e, apesar da inclinação, já era possível pedalar novamente.

Já a uma cota mais alta, intervalada por alguns vales e até uma pequena represa, chego a um complexo habitacional em construção. Casas modernas com vedações em madeira tratada e algumas delas ladeadas por pequenos campos de futsal. Fiquei na dúvida se seriam de habitação própria ou algum complexo turístico. Seja como for, o lugar é fantástico.

Continuando a avançar, entronquei numa estrada que reconheci de outra incursão há longos meses atrás. A certa altura, depois duma curva, deparo-me com um guarda da GNR.  Estava a implementar segurança aos treinos dum piloto de rally (um tal de João Barros…). Fiquei por ali uns minutos à conversa e tive oportunidade de assistir a duas passagens do potente Fiesta naquela recta a cerca de 160km/h, segundo afirmavam alguns observadores no local.

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Despedi-me do guarda e, enquanto me afastava a caminho da Sra do Viso, ia ouvindo ao longe, atrás de mim, o ruidoso motor a ecoar pela floresta. Mais uma pausa para foto numa bucólica estrada e pouco depois estava na capela envolta pelo nevoeiro.

A partir daí foi seguir o caminho habitual de regresso a casa, por Felgueiras. As pernas não demonstravam grande frescura (falta de kms? frio?) mas já perto de casa, numa cota mais baixa e com a temperatura mais elevada, lá começaram a recuperar permitindo chegar a casa em boas condições.

 

Sem Gonçalo

A longa marcha da cama até à garagem

Quando era pequeno julgava que era característica dos adultos conseguirem levantar-se cedo. Até há alguns anos atrás estava convencido que o avançar da idade me traria esse super-poder. A minha esperança tem-se gorado. Levantar pela manhã é sempre um sofrimento atroz. Ter-me-ei portado mal numa outra vida e agora estarei no inferno condenado para todo o sempre a esta tortura diária que é sair da cama? O problema é mesmo deitar-me tarde sistematicamente. Talvez se o dia tivesse mais horas o problema não se colocasse: poderia passar muitas horas acordado, dormir outras 10 e ainda ter algum tempo livre para calmamente despertar o corpo pela manhã. Encélado, uma das luas de Saturno, devia ser um bom sítio para viver…

Talvez tenham sido aqueles os pensamentos que me ocorreram no Sábado pela manhã. O entusiasmo do dia anterior tinha-se diluído na preguiça mas lá prevaleceu o espírito de missão e quem cruzou na estrada talvez se tenha apercebido do ciclista encolhido pelo frio gélido de Novembro. O vestuário era escasso, quase estival, nem luvas havia. O objectivo era não ser abafado com o calor durante o avançar do dia mas aquele início de manhã fazia ponderar o acerto da decisão.

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O percurso inicial foi o do costume: Taipas, Póvoa de Lanhoso, Gerês… Depois a sossegada subida para a Portela de Leonte. Como esperado, a natureza brindava os olhos com uma orgia de cores e luz. Infelizmente a gama dinâmica da pequena máquina fotográfica e a habilidade do fotógrafo não eram suficientes para capturar uma fracção dessa beleza.

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Passada a Portela do Homem o sossego continuava. Pretendia-se regressar a Portugal pela fronteira do Lindoso mas desta vez o caminho escolhido não seriam as estradas principais que convergem em Lobios. Uma pesquisa nos mapas mostrara uma alternativa mais pitoresca. Tão pitoresca que por vezes era necessário olhar melhor para distinguir a estrada do acesso a um qualquer quintal. Numa viela com o chão pejado de ouriços da castanha uma tabuleta num casebre anunciava a “Adega do Bogas”. Cá fora uma pipa vazia. A construção era velha mas a porta era sólida. A fechadura parecia nova o que me levou a conjecturar sobre que tesouros guardaria.

Reconheci uma estrada. Há muitos anos havia passado ali com o Major numa qualquer incursão de BTT. Já não me lembro se éramos só os dois ou se ia mais alguém mas recordo uma sensação de grande empeno… A beleza da paisagem devia-se à calma presente naquele sopé da serra Amarela. Árvores por ali havia poucas, tirando alguns pinhais logo no início que tinham sido castigados pelo fogo. Nas aldeias não se via vivalma, apesar de não parecerem abandonadas, longe disso, o que me deixou curioso quanto aos motivos.

De volta à estrada nacional os kms passaram num ápice. Cruzada novamente a fronteira, uma pausa em Paradamonte para reabastecer para o regresso. Não queria ir por Germil mas também não me apetecia fazer a monótona subida de Ponte da Barca para a Portela de Vade. A opção acabou por recair em Barral e Azias até Aboim da Nóbrega. Daí descer então para a Portela de Vade e rolar até casa.

Pedalando sozinho tinha conseguido moderar o ritmo ao longo do dia o que fez com que chegasse a casa apenas saturado das horas em cima do selim mas menos cansado do que já tem acontecido em saídas muito mais curtas.

 

A longa marcha da cama até à garagem