A nossa Nacional 2

Os preparativos

O viajante é um perscrutador do mundo que o rodeia e aquilo que vai
indagando regista-o no seu diário de viagem (…) Dependendo da orientação da sua atenção e da finalidade daquilo que quer registar, o desenhador optará ainda pela omissão de determinados pormenores considerados
secundários ou, pelo contrário, pelo registo realçado dos mesmos, por achar que estes pormenores devem assumir um valor importante.
in “Desenhando em Viagem, os cadernos de África de Roberto Ivens” de Mara Taquelim

Numa volta de Domingo de manhã o Tico anunciou a intenção de aproveitar a semana com dois feriados para ir fazer a N2. Assim de repente e sem férias marcadas limitei-me a desejar-lhe boa viagem, sem colocar a hipótese de o acompanhar. Mas dos projectos mais populares para fazer de bicicleta este era um dos raros que me despertava verdadeiramente o interesse.

Passados uns dias, talvez numa 3ª feira à tarde, na semana anterior à jornada, recebi um telefonema dele a pedir ajuda para lhe preparar as etapas para carregar no GPS. Perguntei-lhe que pontos de paragem tinha previstos e disse-lhe que tentaria fazer algo nessa noite, se tivesse tempo. Na verdade até foi rápido, com recurso ao RideWithGPS e aos mapas do Google com o indispensável StreetView. Mas desengane-se quem pense que foi só clicar em pontos da N2 assinalados no mapa e deixar o software fazer o resto. Apesar de estar longe de ser um conhecedor das características desta estrada sabia bem que não se trata duma estrada homogénea mas sim dum conjunto de troços de características diferentes. Por exemplo, nas férias de 2019 tinha andado para os lados de Vila de Rei e percebido que a actual N2 naquela zona se tinha transformado numa via rápida que chegava a ter 3 faixas em algumas zonas. Sabia também que nessa zona havia um troço da N2 original que tinha sido requalificado como estrada municipal. Com esse alerta em mente tentei avaliar, muitas vezes recorrendo à precisosa ajuda do StreetView, as condições da estrada por onde estava a traçar o percurso. Isso levou a um desenho mais criterioso onde, sem qualquer remorso, certos troços da N2 foram substituídos por outras estradas ou caminhos que me pareceram muito mais interessantes. O trabalho da primeira noite ficou por aí. Não enviei de imediato os ficheiros para o Tico pois na noite seguinte ainda iria recorrer ao flyby do GoogleEarth para confirmar que não havia pontas soltas no projecto. Teria ainda de lhe dar algumas dicas sobre como lidar com essas nuances do percurso.

Na segunda noite, como planeado, revi o percurso e, ao sabor do desenrolar do trajecto no monitor do PC, ia despertando aquele sentimento de quem “entrega um filho para adopção”. Caramba, isto tem potencial para ter muita piada… Apercebendo-se disso a família começou a incentivar-me. No dia seguinte liguei ao Tico a anunciar que tinha acabado de ganhar um guia para a viagem se tratasse de reservar alojamento também para mim. De momento restavam-me dois dias de concentração total no trabalho para deixar tudo em dia e poder antecipar uns dias as férias.

No Sábado de manhã demos a habitual volta. Nas calmas mas até um pouco mais longa do que o que seria aconselhável. À tarde combinámos o que íamos levar. Para aqueles que pensem efectuar o percurso e necessitem duma ideia, aqui fica o inventário.

Coisas comuns: o Tico levou as ferramentas; eu levei o protector solar (pequena embalagem de spray, já com apenas 1/4 do produto e validade expirada em Março), uma embalagem com um resto de pasta de dentes, um pedaço de corrente, um elo rápido, remendos e cola.

Cada um levou ainda uma bomba de ar, uma câmara, um kit de luzes e uma máscara para entrar em locais onde fosse necessária, atendendo às omnipresentes regras da Covid-19. Documentos, cartão de débito e telemóvel não podiam faltar. Levei ainda a pequena Canon numa bolsa ao peito, na minha opinião muito mais prática que o telemóvel para tirar fotos. O Tico levava a GoPro presa no guiador. O meu GPS utiliza duas pilhas AA pelo que tive de transportar o respectivo carregador assim como um carregador para o telemóvel. Para a Canon não achei necessário pois a bateria devia aguentar perfeitamente os 6 dias, como se veio a verificar. Na bicicleta transportávamos 2 bidons, que íamos enchendo conforme as necessidades de cada etapa.

Equipamento para pedalar: sapatos de estrada, meias, calções, jersey, corta-vento sem mangas (quando necessário), capacete e óculos. Equipamento para a noite: calções, t-shirt, corta-vento com mangas, uma cuecas e um par de havaianas (sabrinas, no caso do Tico).

A minha mochila

Para o transporte de tudo isto as opções foram diferentes: eu optei por transportar uma mochila às costas, o Tico optou por uma bolsa, que apelidámos de “chouriço” presa por baixo do selim. À frente falarei de novo sobre estas opções.

Prólogo, Delães a Chaves

A N2 liga Chaves a Faro mas o projecto do Tico implicava sair de casa. Uma espécie de prólogo de 150km de Delães até Chaves. Pelas 9h da manhã de Domigo lá nos encontrámos no sítio do costume e arrancámos sem qualquer celebração, como se nos dirigíssemos para apenas mais uma volta matinal. O Fontão também apareceu e acabou por nos acompanhar até à Póvoa de Lanhoso.

Escolhemos ir pela N103 pois pareceu-nos ser um trajecto mais directo e acessível, comparado com a alternativa Cabeceiras-Salto, bastante mais acidentada. Não acumularíamos tanto desgaste nas pernas.

A N103

Tratando-se dum percurso sobejamente conhecido por nós não houve novidades a registar. Mas cedo comecei a duvidar da opção de levar a mochila às costas. Uma moinha na zona lombar teimava em deixar-me desconfortável. Parámos em Ruivães para comer qualquer coisa e reparo noutro problema: tinha os sapatos de estrada com a boca aberta! Uns sapatos que me foram oferecidos, confortáveis e de que até gosto, mas que não primam pela qualidade de fabrico. O problema já tinha surgido pouco depois de os estrear mas julgava ter ficado resolvido depois duma visita ao sapateiro para aplicação de cola. Pelo vistos não ficou e, como é dever da Lei de Murphy, teria de se manifestar de novo precisamente no início desta jornada. Duvidei que aguentassem os 800km que restavam até Faro.

Eu e a mochila (foto Tico)

Tentei abstrair-me dos problemas mas com as costas a doer e os sapatos em desmoronamento aquele primeiro dia não estava a ser lá muito divertido. Só queria chegar rapidamente a Chaves e tentar arranjar alguma solução. Mas até um vento frontal e fresco, que me obrigou a vestir o corta-vento nos últimos kms, parecia querer atrasar esse objectivo. Mas lá chegámos a Chaves.

Confesso que só depois de me decidir a acompanhar o Tico é que soube da existência do passaporte para registarmos o nosso trajecto. Não fazia questão, bastava-me o prazer de pedalar e as fotos, mas lá fomos ao posto de turismo obter um livrinho amarelo para cada um. Admito agora que é uma recordação engraçada.

De seguida procurámos o alojamento que o Tico tinha reservado, uma agradável pensão bem no centro histórico, perto do castelo e começámos aquela que seria a rotina à chegada deste e dos dias seguintes. Tomar banho e lavar a roupa de ciclismo. Abordagem mais tradicional a minha, com lavagem no lavatório. O Tico optou por um 2 em 1, banho e lavagem de roupa simultâneo, numa espécie de pisar de uvas debaixo do chuveiro. Para ajudar a secar fomos recorrendo à “técnica do Major” que consiste em enrolar numa toalha e pisar bem o rolo obtido na esperança que a maior parte da água seja absorvida pela toalha. Depois era só tentar improvisar um estendal na janela e ter esperança que o vento ajudasse a terminar de secar.

Antes de arranjarmos um sítio onde comer e beber ainda fomos a tempo de encontrar uma tabacaria aberta e comprar uma embalagem de super-cola que utilizámos para voltar a colar os meus sapatos. A super-cola continuou a acompanhar-nos até Faro mas não foi novamente necessária pois cumpriu com excelência a sua função.

1ª etapa, Chaves a Viseu

Acordámos pelas 8:00, tomámos o pequeno almoço e pelas 9:00 estávamos a arrancar com as bicicletas. Havia também de ser essa, aproximadamente, a nossa rotina nas etapas seguintes.

Dirigimo-nos à rotunda onde se situa o marco do Km 0. Aquela hora já se encontravam lá alguns motociclistas a tirar a foto da praxe antes de partirem, também eles, em direcção a sul.

Km 0

Começámos a pedalar com muita moderação. Não sabíamos se as pernas estavam totalmente recuperadas do dia anterior e não sabíamos como iam reagir ao acumular das etapas dos próximos dias. Em breve começaram a desfilar no nosso caminho nomes ligados ao negócio da água: Vidago, Salus, Pedras Salgadas… Seria precisamente em Pedras Salgadas que faríamos a primeira paragem para carimbar os nossos passaportes. Seguiu-se Vila Pouca de Aguiar e Vila Real, onde parámos também no Burger King para almoçar.

Entretanto um ajuste nas alças da mochila que tinha feito na noite anterior parecia estar a resultar. Nem neste dia nem nos que se seguiram as dores lombares provocadas pela mochila voltaram a se assunto. Sendo assim não me arrependi da escolha, até porque, embora não sendo grave, o Tico também teve alguns problemas com a oscilação do “chouriço” e com o efeito do vento lateral no mesmo.

A tarde adivinhava-se quente mas supostamente seria sempre a descer de Vila Real ao Peso da Régua. Na verdade não é bem assim mas as dificuldades iam sendo atenuadas pela beleza da paisagem que se ia desenrolado aos nossos olhos e que nos fez parar algumas vezes para a contemplar e registar em foto. Por aquelas bandas parece que apostam em explorar o potencial turístico da N2, a prová-lo o marco comemorativo dos 75 anos da mesma existente em Santa Marta de Penaguião.

Peso da Régua. Depois de atestados os bidons com água fresca para a longa ascensão até ao alto de Bigorne, atravessámos o Douro e encetámos a primeira fase da subida até Lamego. Encontrámos um bom ritmo e rapidamente vencemos estes primeiros cerca de 10km. Pelo caminho ultrapassámos um outro ciclista que descansava ou telefonava numa sombra da estrada. Mais tarde verifiquei no Strava que tinha um projecto semelhante ao nosso.

Após mais uma rápida paragem para carimbar em Lamego reiniciámos a ascensão. Uma inclinação mais acentuada à saída da cidade foi gradualmente sendo substituída por outra mais suave. O piso degradou-se, prejudicando o rolar dos pneus e o meu físico também. Sabendo que possivelmente só íamos ter uma paragem em condições para reabastecimento em Castro d’Aire comecei a defender-me, andando no elástico, só o suficiente para não perder o Tico de vista. A táctica resultou e chegámos juntos ao alto. A descida até Castro d’Aire foi retemperadora assim como a pausa que fizemos na simpática pastelaria onde foi também possível colocar mais um carimbo no passaporte.

A natureza caprichou por aquelas bandas e a estrada, serpenteando entre vales, é protegida por arvoredo que a torna bastante fresca. Talvez demasiado fresca para quem descia envergando apenas uma jersey aquela hora da tarde.

Uma placa indicava um corte da estrada e sugeria um desvio. Curiosamente o track que eu tinha desenhado também sugeria esse desvio. Pelos vistos o Tio Google também era conhecedor do problema. Como desconhecíamos a extensão do obstáculo caso seguíssemos pela N2 resolvemos aceitar o desvio. Seria também uma oportunidade para conhecermos outros caminhos.

Foi engraçado. O desvio levou-nos para estradas secundárias e estreitas que não têm as mesmas preocupações com a qualidade do piso ou em poupar os utilizadores ao gradiente do terreno. Quase que passávamos pelos quintais das poucas habitações que por ali existem. Um miradouro proporcionava uma vista romântica sobre a vila que tínhamos acabado de atravessar.

Na aproximação a Viseu fomos brindados com uma série de 3 ou 4 subidas que nos “aqueceram a colaça” mas lá chegámos à cidade das rotundas e ao conforto do hotel para a rotina do costume: tomar banho, lavar roupa, comer e beber, descansar.

2ª etapa, Viseu a Pedrogão Pequeno

Lá arrancámos pela hora do costume. Desta vez a roupa não havia secado devidamente e foi com algum desconforto que a coloquei no corpo. Foi coisa de minutos, passado um km em cima da bicicleta já estava seca.

A etapa anterior, com mais de 170km de extensão, deveria ser a mais longa. Mas para esta etapa, embora mais curta, previa-se um acumulado de subida da mesma ordem de grandeza. Além disso uma análise prévia do gráfico de altimetria dava a entender que a maioria desse acumulado surgiria na segunda metade da mesma. Isso confirmou-se logo pela manhã com um trajecto bastante acessível. Atrevo-me a dizer que foi a etapa com o início mais suave de todas.

Esta foi também a etapa onde pela primeira vez o trabalho de casa no desenho do trajecto começou a dar frutos. A partir de Tondela a N2 começa a ser uma paralela ao IP3, tornando-se depois de Sta Comba Dão numa pequena faixa de asfalto que mais se assemelha a um acesso de manutenção à via rápida. Depois, com a aproximação da Barragem da Aguieira, acaba por desaparecer. Víamos alguns motociclistas parados em cruzamentos indecisos sobre o sentido a seguir mas nós íamos avançando sem dúvidas, confiando no traço carregado previamente no GPS.

A seguir à barragem a N2 (ou IP3) segue durante alguns kms pela margem direita do Mondego mas nós optámos por seguir pela bucólica e deserta estrada da margem esquerda. Com mais alguns improvisos para evitar o IP, que incluiram algum sobe-e-desce e talvez alguns insultos também, lá voltámos à N2 na aldeia de Raiva (esta fica na margem esquerda do Mondego, não confundir com a outra, as muitos kms dali, na margem esquerda do Douro).

Foi também aí que resolvemos parar para almoçar e descansar um pouco. O sol estava quente e um restaurante de ar acolhedor na beira da estrada com várias carrinhas e camionetas estacionadas à porta prometia qualidade e preço baixo. Fomos atendidos por uma empregada que parecia assustada com a patroa exigente. A escolha não era muita. Optei pelas moelas e o Tico por lulas. Pode não ser a opção mais óbvia para quem pedala mas era o que havia.

Foi com preguiça que voltámos à estrada. Tondela seria o próximo “posto de picagem”. Só que Tondela fica na outra margem do rio, lá a meio da encosta, e nenhum dos dois achou que valesse a pena o dispêndio de energia e tempo. Contentámo-nos com o carimbo disponibilizado por uma bomba de gasolina logo ali na berma e seguimos viagem.

Uma viragem à esquerda e uma pequena mas inclinada subida anunciaram também uma inflexão nas características do percurso. Pouco depois passávamos em Vila Nova de Poiares que, pessoalmente, me surpreendeu por uma aparente animação industrial que não esperava encontrar no interior do país. Ainda que os desníveis não fossem acentuados, começávamos agora a percorrer uma estrada com características de montanha, serpenteando por encostas com panorâmicas sobre vales que se estendiam até onde a vista alcançava.

Chegámos a Góis, localidade onde só tinha passado uma vez quando há 7 anos atrás participei num Granfondo pela serra da Lousã. Na altura não devo ter apreciado devidamente pelo que para ambos foi como se fosse a primeira vez. Ficámos agradavelmente surpreendidos e com vontade de voltar. Passámos por vários locais fantásticos ao longo desta viagem mas Góis reúne unanimidade quanto à impressão que deixou.

A longa subida que se seguia, pela encosta da serra da Lousã, convidava a acelerar o ritmo mas, consciente e voluntariamente, tivemos o bom senso de baixar a cadência. Isto não era o tradicional passeio de Sábado, amanhã e nos dias seguintes haveria mais e era necessário dosear o esforço.

Passada a cumeada seguiu-se uma agradável, rápida e sinuosa descida que nos levou ao marco do km 300 onde parámos para o assinalar. Um pouco à frente parámos no destacamento de Alvares dos bombeiros de Góis onde obtivemos o carimbo desse km 300 e aproveitámos para reabastecer os bidons com água fresca.

O sobe e desce que se seguiu até Pedrogão Grande trouxe um desgaste inesperado, atenuado pela passagem pelas localidades de Picha e Venda da Gaita, cujas placas despertam sempre um sorriso maroto e distraem o cansaço.

Em Pedrogão Grande carimbámos o passaporte no quartel dos bombeiros. Quando lhes dissemos que tínhamos alojamento do outro lado da barragem, em Pedrogão Pequeno, começaram a rir. No hotel? Exactamente, respondemos. Então quando forem a atravessar a barragem olhem lá para o alto, não tem que enganar. Era verdade. Vimo-lo de imediato. Aquilo era uma espécie de Kehlsteinhaus (o Ninho da Águia de Hitler), situado lá no alto, sobranceiro à estrada e à albufeira. Claro que teríamos de trepar, e bem, para vencer aquelas últimas centenas de metros. Uma espécie de calvário no final do dia, devidamente assinalado pelas cruzes na beira do caminho que indicavam a aproximação duma capela erigida no mesmo cume. Insultei o Tico pela escolha enquanto ziguezagueávamos rampa acima e fiz questão de fazer notar à recepcionista que aquele hotel não era nada “bike friendly”.

Depois daquela surpresa resolvi, depois de jantar, verificar onde ficava exactamente o alojamento no final da etapa do dia seguinte, que devia terminar em Montargil. Em boa hora o fiz pois o Tico, inadvertidamente, tinha marcado o alojamento para Ponte de Sôr, 24 kms antes! Podíamos parar em Ponte de Sôr mas a etapa ia ficar um pouco curta e a do dia seguinte ia ficar ainda mais longa. Pegámos no smartphone e começámos a procurar alternativas. Deparámo-nos com uma interessante no Couço. Implicava um desvio de alguns kms da N2, a seguir a Montargil, mas não havia necessidade de voltar para trás pois podíamos apanhá-la de novo um pouco à frente, em Mora. Além disso, segundo o Street View, pareciam tratar-se também de estradas agradáveis pelo meio da planície ribatejana. Como ainda não era demasiado tarde, telefonámos e reservar o novo alojamento e a cancelar o anterior.

3ª etapa, Pedrogão Pequeno a Couço

Pedrogão Pequeno fica junto a Pedrogão Grande, na margem esquerda do Rio Zêzere, mas pertence ao conselho da Sertã. Julgo que a informação poderá ser importante para o leitor desta crónica. Quem sabe não será esta a resposta correcta para o prémio de 50000 euros num qualquer concurso televisivo. Ou que o Rio Ceira passa em Góis. Viajar, já se sabe, melhora a nossa cultura.

O nosso país tem coisas fantásticas em todas as regiões mas há coisas que são mais fantásticas numa região que noutra. Sou de opinião que só há pão digno desse nome do Mondego para baixo. Para norte há muita variedade de “pão” mas nenhuma delas se aproveita, nem mesmo aquela coisa dura e escura feita de farinha de milho de que alguns conterrâneos tanto se orgulham. Outra coisa que se destaca do Mondego para baixo é o cheiro da vegetação quando o Verão se aproxima. E nesta etapa começámos finalmente a sentir com intensidade esses odores.

Felizmente que por aquelas bandas o IC8 deixou a N2 imaculada e assim pudemos desfrutar dum passeio agradável pela tranquilidade da estrada apenas interrompida pela passagem pontual de mais alguma moto de outros viajantes a efectuar o mesmo percurso que nós. Uma constante ao longo das etapas que durou esta viagem.

Paragem na Sertã para mais um carimbo, reabastecimento e regresso à estrada para uma agradável ascensão pela N2 original visto que a N2 actual entre a Sertã e Abrantes é uma via rápida sem qualquer interesse para ciclistas. Terminada a subida chegávamos aquele que era para mim um dos pontos mais aguardados da viagem, onde iria dar asas à criatividade para desenhar percursos. Estávamos num cruzamento, à direita tínhamos indicação de que seguia por ali a N2, para sul, mas, como foi referido trata-se duma via rápida de pouco interesse. À nossa frente tínhamos o desconhecido, a N244 que tinha ali o seu km 0. Claro que foi por aí que seguimos.

Que bela surpresa se revelou esta estrada. Mais acidentada que a N2 mas com paisagens deslumbrantes numa região onde não abunda a presença humana. Desde logo começámos a elaborar planos de registar o exclusivo dos passaportes para que quem a venha a visitar tenha de nos pagar royalties por cada carimbo. Fomos seguindo, tirando fotos e inalando o cheiro do rosmaninho, mas acabámos por deixar esta estrada e divergir para oeste, a caminho de Vila de Rei, através de estradas ainda mais acidentadas, de piso nem sempre imaculado e atravessando aldeias dispersas despovoadas de gente.

N244

O calor do meio do dia fazia-se sentir quando chegámos a Vila de Rei. Julgo que é da praxe para quem percorre a N2 visitar o Picoto da Melriça, onde se situa o centro geodésico de Portugal. Já lá tinha ido de carro e lembrava-me bem como aqueles últimos metros de subida tinham custado ao pobre motor de 80cv. Seria a minha retribuição ao Tico da chegada ao hotel do dia anterior, pelo que valeu a pena retroceder 2 km pela já várias vezes aqui referida via rápida e fazer o desvio para ir lá acima.

Picoto da Melriça, centro geodésico de Portugal

Tal como outros turistas que por ali pululavam também nós tirámos as nossas fotos para recordação após o que nos lançámos ladeira abaixo, sem que antes tivéssemos ali obtido mais um carimbo. Paragem numa pastelaria da vila para comer qualquer coisa e repor o nível dos bidons.

Conhecia relativamente bem o troço de estrada que se seguia pois tinha-o percorrido, de carro, algumas vezes durante as férias do ano anterior. Embora não esteja sinalizada o seu acesso e a sua existência, para quem vem na N2 actual, a N2 original entre Vila de Rei e o Sardoal é um prazer para o ciclista e não só. Inicialmente parece que alguém a quer manter secreta. Não existem indicações mas se entrarmos nela os primeiros marcos que encontramos até estão pintados de branco, como se sinalizassem uma estrada fantasma. A estrada, estreita e sinuosa, vai-se desenrolando por entre encostas e vales. Paragem obrigatória no miradouro do Penedo Furado, com vista para a praia fluvial, os passadiços e um dos vários braços da Albufeira de Castelo do Bode. Umas centenas de metros à frente o início da subida assinalava também a entrada no distrito de Santarém, mais precisamente no concelho do Sardoal. Os marcos indicavam agora “N358-3, antiga N2”.

A estrada continuou a deslumbrar-nos até ao Sardoal onde parámos para mais um reabastecimento e carimbo num simpático café cuja funcionária nos afiançou ter o edifício mais de 300 anos. Acreditámos pois toda a vila parece estar ali implantada há vários séculos.

Podíamos agora seguir pela N2 oficial até Abrantes mas a memória que tinha do ano anterior, quando lá passara de carro, era de mais uma estrada com características de via rápida fazendo a aproximação à cidade pelo meio de indústrias e trânsito de camiões. Tinha no entanto uma alternativa na manga. Perguntei ao Tico se estava comigo. Claro que se tratava de simples retórica pois já sabia a resposta. Assim divergimos mais uma vez para oeste através duma estrada municipal que nos permitiria apanhar na localidade de Sentieiras a também estrada municipal que liga Carvalhal a Abrantes. O problema foi que essas duas estradas não se encontram à mesma cota e assim, à custa de bom suor, julgamos ter inaugurado o Mur de Sentieiras. Pelo menos daí até Abrantes foi sempre a descer e à entrada da cidade tivemos a agradável (pelo menos para mim) vista da Casa de Benfica de Abrantes.

Não queríamos prolongar ainda mais o tempo de viagem pelo que optámos por não visitar o centro da cidade, que fica numa cota mais alta. Assim dirigimo-nos de imediato à travessia do Tejo tendo o carimbo sido obtido à face da estrada, no simpático Retiro do Camionista.

As grandes rectas a sul do Tejo

Com a passagem para o sul do Tejo mudou também a tipologia da estrada. Começaram a aparecer as primeiras longas rectas, primeiro entre campos de regadio, depois entre plantações de pinheiro manso, sobreiro ou mesmo eucalipto. A excepção foi uma curta mas trabalhosa “mudança de nível” na localidade da Bemposta.

Assim chegámos aos arredores de Ponte de Sor. Um carimbo que coincidiu com uma paragem rápida e ala que se faz tarde. Oiço o Tico atrás de mim a falar com alguém. Volto-me e era um companheiro de pedaladas ali da zona a fazer a sua volta vespertina. Disse que era um treino de descompressão por isso se quiséssemos a sua roda até Montargil éramos bem vindos. Foi o melhor que nos podia ter acontecido. É que de Ponte de Sor a Montargil foram praticamente 24 kms de recta com o vento a açoitar-nos essencialmente de lado, por vezes de frente. A roda foi uma ajuda e a conversa uma distracção, sendo que nos foi informando de algumas temas relacionados com a escola de aviação ou com a exploração turística da albufeira. De notar que usando ele um equipamento da Education First e o Tico atrás dele com o “chouriço” pendurado veio-me à memória aquele popular vídeo do Rigoberto Uran e do agricultor.

O “Rigoberto”

O nosso companheiro, de seu nome André, deixou-nos em Montargil e nós também deixámos a N2 pois tínhamos agora de percorrer apenas mais 10 km até ao nosso destino de pernoita, na aldeia do Couço, onde chegámos pouco depois.

Cumprida a rotina do banho e da lavagem da roupa fomos à procura de um restaurante para jantar. A aldeia é pequena e a escolha não era muita mas, para piorar a situação, por um motivo ou outro todos os restaurantes estavam encerrados. Vimos a coisa mal parada pois estávamos mesmo com fome. Mas foi a melhor coisa que nos podia ter acontecido. Resolvemos entrar no café do Bexiga e perguntar se havia alguma coisa que comer. Só se for bifanas, disse ele de forma desprendida. Pode ser, respondemos. Que rico final de dia ali passámos, no meio dos indígenas que assistiam à miserável exibição do meu Benfica na TV. Não foi apenas uma mas sim duas bifanas para cada um, naquele divinal pão ribatejano, acompanhadas por imperiais, que fino é coisa de galego.

Estávamos reabastecidos. Voltámos ao quarto para descansar. Antes de adormecer entretive-me no telemóvel a pesquisar personagens alentejanas, ou que pelo menos eu associava ao Alentejo, para ver ser iríamos passar nas suas localidades: Vitorino, Catarina Eufémia, Mafalda Veiga, Florbela Espanca… não sendo eu conhecedor de poesia, proporcionou-se a curiosidade de ler um pouco sobre a sua biografia e a sua obra na Wikipedia.

Não tenhas medo, não! Tranquilamente,
Como adormece a noite pelo outono,
Fecha os olhos, simples, docemente,
Como à tarde uma pomba que tem sono…

E pouco depois devo ter adormecido…

4ª etapa, Couço a Ferreira do Alentejo

A manhã acordou mais fresca e nebulada que nos dias anteriores. Até à data não nos podíamos queixar da meteorologia. Temperaturas amenas, perfeitas para pedalar. Umas nuvens ou mesmo um chuvisco não traria mal ao mundo. Chuva a sério já ia complicar as coisas pois não vínhamos preparados para a enfrentar. Mas tínhamos consultado as previsões e a probabilidade de chuva era baixa por isso só esperávamos que a sorte nos continuasse a acompanhar.

Saímos da aldeia do Couço mas em vez de nos dirigirmos de imediato à N2 resolvemos recuar um pouco para não deixar de conhecer a pitoresca vila de Mora e, já agora, obter mais um carimbo. Grupos de motociclistas tomavam o pequeno almoço em diversos estabelecimentos da localidade. Mais adiante haviam de passar por nós nas suas montadas mais ou menos majestosas. Havíamos de trocar algumas palavras com um grupo vindo de Braga, na paragem ritual no Ciborro para comemorar o marco dos 500.

Entrámos definitivamente nas estradas alentejanas, caracterizadas por longas rectas onduladas. Desenganem-se os que pensam que se trata dum paraíso para o ciclista. Na verdade o desnível não é grande e podemos tentar ganhar alguma velocidade na descida para tentar passar a subida seguinte em sprint. Isto podia ser viável meia dúzia de vezes mas ao trigésimo nono topo estaríamos totalmente esgotados. Assim limitamo-nos a um pedalar ponderado e paciente. Pedalamos a descer, para ganhar kms, pedalamos a subir, com contenção para não nos esgotarmos. Sempre a pedalar. A relação espaço-tempo começa a deformar-se e sem referências intermédias entre duas localidades ir de A a B parece demorar uma eternidade. Felizmente que a paisagem, essencialmente a tradicional planície onde estão implantados os tão falados montes alentejanos, tem variantes capazes de nos manterem encantados ao longo da viagem. As máquinas fotográficas não paravam de disparar em busca “daquela” foto.

Durante a paragem em Montemor-o-Novo surgiu o segundo problema técnico da jornada. O primeiro, conforme se devem lembrar, foi com os meus sapatos que depois de colados em Chaves não voltaram a ter problemas. E agora o problema era novamente nos sapatos! O Tico tinha perdido dois parafusos e por isso tinha uma travessa solta. A solução foi retirar um parafuso do outro sapato e prosseguir com apenas dois parafusos em cada travessa. Problema resolvido, aguentou até Faro. De notar que ao longo dos mais de 800km de viagem não tivemos qualquer problema ou avaria com as bicicletas. Nem furos tivemos, talvez por sorte ou talvez porque utilizámos resistentes pneus de 28mm, no meu caso, ou de 32mm tubeless no caso do Tico.

As paragens seguintes foram em Alcáçovas, para apreciar o centro da localidade, e no Torrão, em cuja entrada fizemos uma encenação para a foto numa antiga calçada romana ali existente. Enquanto o Tico obtinha mais um carimbo eu abrigava-me da chuva, que resolveu brindar-nos durante alguns minutos, e entretive-me a falar com o maluco da aldeia, uma celebridade do Preço Certo em Euros que me deu úteis conselhos sobre motos, caso algum dia venha a percorrer a N2 recorrendo a esse meio de locomoção.

E chegámos a Ferreira do Alentejo onde fomos recebidos de martelo na mão pela Ferreirinha, uma moçoila em bronze, de perna grossa e peito avantajado, pelos vistos muito popular por aquelas bandas, pelo que consegui apurar. Cumprida a rotina do banho e da faxina seguiu-se o jantar num restaurante local, que incluiu uma deliciosa sopa do cozido, e entretidos por um empregado falador mas que nunca deverei reconhecer se me voltar a cruzar com ele, culpa destes tempos em que todos têm de usar máscara.

5ª etapa, Ferreira do Alentejo a Faro

Esta jornada começou por ser uma continuação da anterior no que às característica da estrada e da paisagem diz respeito. O primeiro desvio foi para conhecer o centro da animada vila mineira de Aljustrel. À saída ainda houve tempo para umas fotos na antiga linha de comboio, inaugurada em 1929 com o objectivo principal (mas não único) de escoar o minério mas entretanto desactivada.

Seguiu-se Castro Verde, concelho onde se situa a Mina de Neves-Corvo. Curiosamente é em Almodovar que se situa um imponente monumento evocando os mineiros. O corpulento mineiro com uns 10m de altura e braço estendido fez-me lembrar de imediato imagens que vi em tempos, e que me impressionaram, do monumento à Mãe Pátria, em Volgogrado. Uma pesquisa posterior deu-me a conhecer o nome de Aureliano Marques de Aguiar, autor desta e de outras obras existentes no concelho, inclusive um apocalíptico carro de bombeiros em escala real que também havíamos fotografado uns minutos antes.

Mais para a frente o cenário mudou radicalmente. Entrámos no distrito de Faro e a planície alentejana deu lugar ao ondulado da serra do Caldeirão. Para mim uma das zonas mais bonitas dos 800km de percurso. Íamos subindo mas quase não nos apercebíamos, tal a suavidade do piso e a beleza da paisagem circundante. Por vezes também descíamos a grande velocidade por sequências de curvas que mesmo assim nos permitiam largar os travões. As motos e agora também as Vespas continuavam a passar por nós com regularidade.

Uma paragem no Miradouro do Caldeirão permitiu-nos meter conversa com um desses grupos de “vespistas” com quem já nos tínhamos cruzado pela manhã em Aljustrel. Ficámos a saber que vinham de Fafe. Arrancámos antes deles mas passados alguns kms lá voltaram a passar por nós, lançados em direcção a Faro.

A passagem pelo Barranco do Velho trouxe-me recordações das transmissões da Volta ao Algarve. Nunca cheguei a ter a noção de onde se situou o topo da serra pois andámos por lá num sobe-e-desce constante que só se tornou numa descida mais longa já muito perto de São Brás de Alportel, localidade onde parámos para um penúltimo carimbo no café da divertida Cristina que fez questão de serem os nossos passaportes a “tirar os três” (palavras dela) ao carimbo entregue em mão naquele mesmo dia por um funcionário da autarquia, depois dela própria ter reclamado em sede própria do absurdo que era terem desviado o trajecto da N2 para uma espécie de variante que contorna a vila, desviando potenciais turistas do centro da localidade. Claro que nós íamos a seguir o percurso original, mesmo contrariando sentidos proibidos e impedimentos por obras, pelo que parámos mesmo no café da Cristina.

Daqui até Faro a única recordação agradável foi a sensação de estar quase a cumprir o objectivo. Um vento frio e despropositado teimava em nos fustigar, inicialmente de frente e a certa altura de lado, obrigando-nos a segurar o guiador com firmeza para não ziguezaguear na estrada de trânsito mais intenso. A paisagem, subúrbio de cidade grande, também não tinha interesse. Restava-nos fazer a contagem decrescente dos kms.

E lá estava ele, o marco do km 738, numa rotunda no chão da qual tinha sido desenhado o mesmo número. O Tico dirigiu-se para o meio da rotunda, onde uma família assinalava também a conclusão da jornada. Entretanto outros viajantes haviam de chegar. Quanto a mim, deixei-me ficar alguns minutos em cima do passeio, à entrada da rotunda, encostado a um sinal de trânsito enquanto saboreava o momento. Eventualmente lá me juntei ao Tico para a foto da praxe.

Epílogo

Foi uma experiência extremamente agradável. Não gosto de lhe chamar aventura pois considero que uma verdadeira aventura tem de conter mais risco, dificuldade e imprevisibilidade. No nosso caso a única dificuldade foi pedalar aquela quantidade de kms. Mas há até quem o faça numa assentada, por isso… Risco e imprevisibilidade parece-me que estiveram sempre perfeitamente controlados, até a meteorologia foi piedosa conosco.

Pode parecer que o país é pequeno quando até dois tipos sem preparação especial o conseguem atravessar de bicicleta mas, paradoxalmente, quando recordamos a diversidade de paisagens e lugares que percorremos e fotografámos, parece enorme.

Restavam-nos ainda 11km de pedalada até Quelfes onde, tal como em tempos a Florbela, iríamos descansar em casa de gente amiga. No dia seguinte quem passou na estação de comboios de Faro pela hora de almoço talvez tenha reparado em dois tipos com aspecto indigente, devido às vestes com uma semana de uso, e duas trouxas toscas do que pareciam ser componentes de bicicleta, a aguardar o comboio para norte.

A nossa Nacional 2