Se tem solução…

Adorava ler revistas de quadradinhos da Disney. Acho que ainda gosto. Alguém com o senso mais apurado pode alegar que a sua personalidade foi formatada pelos clássicos da literatura mundial. Pois nunca tive vergonha de admitir que fui influenciado pelo Peninha. Retive até hoje, duma dessas histórias, uma imagem do Tio Patinhas na sua sala das preocupações onde na parede havia um quadro com o texto “Se tem solução, porquê se preocupar? Se não tem solução, porquê se preocupar?”. Aquilo deve ter feito sentido para mim pois nunca mais o esqueci e, para o bem e para o mal, serviu-me para encarar diversas situações ao longo dos anos. Vem isto a propósito de uns últimos meses complicados.

Os sinais já estavam presentes há uns tempos mas, pelo menos pelo que percebia, eram apenas indícios que necessitariam de alguma vigilância à minha saúde. Com o meu habitual optimismo tinha optado por desvalorizar a situação. Entretanto as restrições do Covid abrandaram, os serviços médicos pareciam estar a voltar ao seu funcionamento normal e achei que talvez fosse uma boa altura para nova avaliação. Duas situações distintas, sem qualquer relação, que apenas coincidiram no tempo.

Pólipos na vesícula. Lá continuavam, tal como há uns anos atrás. Nunca me incomodaram mas desta vez resolvi seguir o conselho do médico. Segundo ele o protocolo aconselhava a cirurgia. Pronto, vamos lá a isso. A intervenção ocorreu a 6 de Dezembro. Coisa simples, feita em ambulatório com anestesia geral. Havia o risco de ficar com algum grau de intolerância a certos alimentos. A verdade é que se até ali a vesícula nunca me tinha incomodado, desde que a removi também nunca senti a falta dela! No que a este blog diz respeito, que é a minha paixão pela bicicleta, foi o mês de Dezembro sem dar ao pedal. Mas o tempo esteve miserável, pelo menos tive uma boa desculpa para não apanhar chuva.

Mas a vesícula era o menor dos meus problemas. Algo também não estava bem com a próstata. Temos de avaliar isso melhor, disse o médico, vamos fazer uma biópsia. Se me iam espetar uma agulha naquele lugar teria de ser com anestesia geral. Podiam alegar que a anestesia local seria suficiente mas eu não queria estar acordado para ver. O exame foi efectuado em Outubro e num apropriado final de tarde chuvoso e sombrio de Novembro foi-me transmitido o resultado: cancro. É aquela palavra que ninguém quer ouvir. Fiz a viagem de regresso a casa sozinho, como era habitual, com um turbilhão de coisas a passar-me pelo pensamento. Tentava planear os passos seguintes mas será que valia a pena fazer planos?

É aqui que entra o quadro do Tio Patinhas. O caminho era simples: fosse qual fosse o desfecho era fazer o que podia ser feito. E havia muito que fazer. Consultas, exames, mais consultas, mais exames. Depois havia a questão da vesícula cuja intervenção se tinha de encaixar ali pelo meio. Como o acompanhamento das duas situações estava a ocorrer em hospitais distintos às vezes via-me a repetir os mesmos procedimentos em dias consecutivos. Tive de criar um pequeno cronograma numa folha de papel para não falhar nenhum agendamento. Pelo meio uma boa notícia: exames complementares pareciam indicar que o tumor se encontrava circunscrito à próstata.

Entretanto a minha disposição estava excelente. Não fazia ideia como reagiria a uma situação dessas mas a verdade é que não tinha perdido o sono, trabalhava, andava de bicicleta e falava abertamente do problema chegando a fazer piadas sobre o assunto. Acho que falar sem rodeios sobre o problema ajudou. Isso e não ir para a internet à procura de segundas opiniões. Mal ou bem, decidi confiar a 100% no conselho do médico. Tinha várias hipóteses de tratamento (ou então não fazer nada). Atendendo à minha condição, idade, etc. ele recomendou-me o tratamento que seria mais radical, mais invasivo, mas que também achava que me traria mais benefícios: prostatectomia radical. Ou seja, remoção total da próstata.

E assim cheguei ao dia 4 de Março. Acordei da anestesia (a terceira em meio ano) com mais cinco furinhos na barriga. Tal como na vesícula (quatro furinhos), também esta intervenção foi laparoscópica pelo que posso agora exibir 9 belas cicatrizes na barriga. A recuperação desta vez não foi um “passeio no parque” como em Dezembro. Quinze dias algaliado foi desconfortável. Mesmo depois de removido aquele apêndice o conforto não voltou de imediato.

Voltando à questão velocipédica, quando da conversa com o médico sobre se devíamos avançar para a cirurgia, uma das questões que lhe coloquei foi o quanto isso iria impactar na minha actividade. Não me deu garantias, talvez para se proteger de me causar expectativas que podiam não se concretizar. Segundo ele, cada caso era um caso. Tinha tido um paciente que passados três meses estava a correr a maratona mas havia pacientes que ficavam com sequelas que os impediam de praticar desporto (incontinência em esforço, por exemplo). Esta conversa terá ocorrido algures em Dezembro. Pensei que era bom que aproveitasse para dar boas pedaladas enquanto podia porque para depois não tinha garantias…

Não resisti. Cerca de 6 semanas após a cirurgia, para irritação de minha mulher, voltei a montar a bicicleta. Estava farto de fazer caminhadas com a cadelita e com muitas saudades de pedalar. A posição na bicicleta não era totalmente confortável e tive de fazer um pequeno ajuste na posição do selim mas regressei a casa com vinte e tal quilómetros percorridos e um indisfarçável sorriso na cara. As semanas parado tinham destruído a minha condição física mas tentei obter satisfação com cada pequena dificuldade superada, com cada pequena evolução. As pedaladas foram ocorrendo cada vez com mais assiduidade, o processo de recuperação continua mas entretanto até já deu para regressar às viagens casa-trabalho. Antes da cirurgia tinha estimado que, se pudesse voltar a pedalar, provavelmente tal só aconteceria lá para o final do Verão. Ter regressado tão depressa animou-me bastante. Quando voltei à consulta com o médico e lhe disse que já pedalava ele não me repreendeu, apenas me aconselhou moderação. Mas o que significará isso para quem não anda de bicicleta, pensei? Enfim, adiante, talvez seja melhor não perguntar. Mas ao despedir-me disse-lhe que agora ele já podia dizer ao próximo paciente na mesma situação que, embora sem garantias, já tinha dois exemplos de tipos que recuperaram a actividade física: o da maratona… e eu!

Estes problemas não se resolvem assim de um dia para o outro. Apesar das boas sensações no pós-operatório a análise ao material removido concluiu que a situação era pior que a prevista pela biópsia. No entanto exames posteriores parecem indicar que tudo foi removido pelo que deverei ficar apenas sujeito ao acompanhamento de rotina. Se tem solução, porquê se preocupar? Se não tem solução, porquê se preocupar?

Se tem solução…